Fado da Estrela d'Ouro
Nuno Amado
Fado da Estrela D’Ouro
Combinei às 20h30
à porta da Cinemateca
enrolei um charro de erva
pra ver se a coisa passava
ficou só canção cansada
a tocar no meu ouvido
Não há nada qu'eu não colha
camomilas do mazelo
e eu já nem quero tê-lo
Já nem conta a vontade da pessoa
São as rochas do mar
São coisas qu'eu tenho visto
e eu nem mereço isto
quando a culpa é do homem
Encontrei-te à 00h00
na Estrela d'Ouro
fica ali na velha Graça
na Senhora do Monte
Pega Monstro, "Fado da Estrela d'Ouro", Casa de Cima. Upset The Rhythm/Cafetra Records, 2017.
Gosto deste poema porque me recorda que a melhor poesia é, geralmente, provinciana e toponímica. O brilhantismo deste poema acentua-se por oposição a uma ideia provinciana sobre o que é a poesia, obrigando a distinguir dois usos diferentes da palavra “provincianismo”. A ideia obsoleta sobre o que é poesia pressupõe que o objectivo poético é tornar consonantes sentimentos e imagens: a imagem de algo exterior descreve de forma precisa o que se passa no interior do poeta (normalmente, quando as imagens são de coisas naturais, como aqui, dizemos tratar-se de poesia bucólica). Neste caso, a qualidade depende exactamente de se falhar esta consonância, o que obriga a que o poema dependa do outro tipo de provincianismo, aquele inerente a ter de se conhecer espaços, hábitos, e pessoas de sítios particulares.
O poema resume-se facilmente: alguém marcou um encontro na Cinemateca (primeira estrofe). Enquanto espera, fuma para se acalmar (em princípio por causa da ansiedade do encontro), e a espera consiste em ficar a ouvir música, supomos que por a outra pessoa não ter aparecido (“ficou só canção cansada / a tocar no meu ouvido”). Mais tarde, esta teoria, a de que alguém faltou a um compromisso, confirma-se quando o encontro se dá noutra parte da cidade (terceira estrofe). Pelo meio, não sabemos exactamente o que terá acontecido, porque o processo narrativo foi substituído por uma tentativa débil de fazer poesia (que pode ser auto-referencial, se considerarmos que a “canção cansada” que ficou no ouvido é a própria canção, ou pelo menos a estrofe que se segue a esses versos).
É naturalmente irónico que este poema comece à porta da Cinemateca, sendo o cinema considerado, justamente, a arte das elipses. Ora, a elipse entre a primeira e a terceira estrofe é exactamente aquilo que torna este poema único; a pausa na descrição, isto é, o tempo entre um encontro marcado para o qual uma das partes não aparece e a hora em que o encontro se dá de facto (as três horas e meia que vão das oito e meia à frente da Cinemateca à meia-noite na Estrela D’Ouro), é descrita pela poesia débil que resulta de uma escassez de imagens que clarifiquem os sentimentos provocados por ter ficado sozinha. Talvez por isso a estrofe se inicie exactamente com a ideia de que a pessoa que ficou à espera colhe tudo, qualquer imagem que lhe possa servir, de camomilas a rochas no mar (que coisa tão inesperada no centro de Lisboa), como se valesse qualquer coisa para tentar expressar aquilo que sente.
A incapacidade de produzir poesia que descreva o que se sente pode dar-se pelo tumulto sentimental ou por uma ineficácia da poeta, mas em todo o caso a segunda estrofe é um espasmo, uma tentativa de fazer poesia para preencher o tempo (poesia bucólica, talvez porque se imagina ser uma vertente mais pura do acto poético). A própria qualidade das duas únicas rimas do poema é muito duvidosa — “mazelo” e “tê-lo”, “visto” e “isto” —, reforçando a ideia de um projecto falhado. O momento crucial é, pois, definido no último verso, na forma como a voz arrastada identifica o monte onde fica a Graça, anunciando uma certa resignação: o sentimento mais forte de todo o poema. Na cidade, a toponímia é muitas vezes o bucolismo possível.
Telmo Rodrigues
Telmo Rodrigues é doutorado pelo Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras, com a tese For a Lark: The Poetry of Songs, na qual explora as relações entre a música popular e a poesia. É actualmente director da revista Forma de Vida.