Contact Us

Use the form on the right to contact us.

You can edit the text in this area, and change where the contact form on the right submits to, by entering edit mode using the modes on the bottom right. 

         

123 Street Avenue, City Town, 99999

(123) 555-6789

email@address.com

 

You can set your address, phone number, email and site description in the settings tab.
Link to read me page with more information.

Fado da Estrela d'Ouro

Poemas de agora

Fado da Estrela d'Ouro

Nuno Amado

 

Fado da Estrela D’Ouro

 

Combinei às 20h30

à porta da Cinemateca

enrolei um charro de erva

pra ver se a coisa passava

ficou só canção cansada

a tocar no meu ouvido

 

Não há nada qu'eu não colha

camomilas do mazelo

e eu já nem quero tê-lo

Já nem conta a vontade da pessoa

São as rochas do mar

São coisas qu'eu tenho visto

e eu nem mereço isto

quando a culpa é do homem

 

Encontrei-te à 00h00

na Estrela d'Ouro

fica ali na velha Graça

na Senhora do Monte

Pega Monstro, "Fado da Estrela d'Ouro", Casa de Cima. Upset The Rhythm/Cafetra Records, 2017.

Gosto deste poema porque me recorda que a melhor poesia é, geralmente, provinciana e toponímica. O brilhantismo deste poema acentua-se por oposição a uma ideia provinciana sobre o que é a poesia, obrigando a distinguir dois usos diferentes da palavra “provincianismo”. A ideia obsoleta sobre o que é poesia pressupõe que o objectivo poético é tornar consonantes sentimentos e imagens: a imagem de algo exterior descreve de forma precisa o que se passa no interior do poeta (normalmente, quando as imagens são de coisas naturais, como aqui, dizemos tratar-se de poesia bucólica). Neste caso, a qualidade depende exactamente de se falhar esta consonância, o que obriga a que o poema dependa do outro tipo de provincianismo, aquele inerente a ter de se conhecer espaços, hábitos, e pessoas de sítios particulares.

O poema resume-se facilmente: alguém marcou um encontro na Cinemateca (primeira estrofe). Enquanto espera, fuma para se acalmar (em princípio por causa da ansiedade do encontro), e a espera consiste em ficar a ouvir música, supomos que por a outra pessoa não ter aparecido (“ficou só canção cansada / a tocar no meu ouvido”). Mais tarde, esta teoria, a de que alguém faltou a um compromisso, confirma-se quando o encontro se dá noutra parte da cidade (terceira estrofe). Pelo meio, não sabemos exactamente o que terá acontecido, porque o processo narrativo foi substituído por uma tentativa débil de fazer poesia (que pode ser auto-referencial, se considerarmos que a “canção cansada” que ficou no ouvido é a própria canção, ou pelo menos a estrofe que se segue a esses versos).

É naturalmente irónico que este poema comece à porta da Cinemateca, sendo o cinema considerado, justamente, a arte das elipses. Ora, a elipse entre a primeira e a terceira estrofe é exactamente aquilo que torna este poema único; a pausa na descrição, isto é, o tempo entre um encontro marcado para o qual uma das partes não aparece e a hora em que o encontro se dá de facto (as três horas e meia que vão das oito e meia à frente da Cinemateca à meia-noite na Estrela D’Ouro), é descrita pela poesia débil que resulta de uma escassez de imagens que clarifiquem os sentimentos provocados por ter ficado sozinha. Talvez por isso a estrofe se inicie exactamente com a ideia de que a pessoa que ficou à espera colhe tudo, qualquer imagem que lhe possa servir, de camomilas a rochas no mar (que coisa tão inesperada no centro de Lisboa), como se valesse qualquer coisa para tentar expressar aquilo que sente.

A incapacidade de produzir poesia que descreva o que se sente pode dar-se pelo tumulto sentimental ou por uma ineficácia da poeta, mas em todo o caso a segunda estrofe é um espasmo, uma tentativa de fazer poesia para preencher o tempo (poesia bucólica, talvez porque se imagina ser uma vertente mais pura do acto poético). A própria qualidade das duas únicas rimas do poema é muito duvidosa — “mazelo” e “tê-lo”, “visto” e “isto” —, reforçando a ideia de um projecto falhado. O momento crucial é, pois, definido no último verso, na forma como a voz arrastada identifica o monte onde fica a Graça, anunciando uma certa resignação: o sentimento mais forte de todo o poema. Na cidade, a toponímia é muitas vezes o bucolismo possível.

 

Telmo Rodrigues


Telmo Rodrigues é doutorado pelo Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras, com a tese For a Lark: The Poetry of Songs, na qual explora as relações entre a música popular e a poesia. É actualmente director da revista Forma de Vida.