As Aves Colectivas da Margem Sul
Maria S. Mendes
As Aves Colectivas da Margem Sul
As Aves Colectivas da margem sul
atravessam as manhãs carregadas de febre
nos olhos e de um sentido positivo para as horas
Ausentes do Tejo durante gerações
têm no bando a sua fraqueza
contra o grande planeamento directivo
São aves metalúrgicas sobre chaminés
conservadas numa hecatombe sedimentada
na vastidão individual dos condomínios
E cá em baixo outros bandos organizados
numa espécie de turbulência
esperam essa queda anunciada
As aves colectivas da margem sul
tinham um estatuto especial de proteção
antes da penúltima escalada sulfúrea
Eram aves de território livre
que resistiam à propriedade
através do conceito de espécie
E agora maximizadas e consecutivas
concentradas numa ordem intensa
transportam o índice e as flutuações
São aves de uma consequência equívoca
afundadas em bancos de ar poluído
e diariamente isoladas do seu canto
Tiago Patrício, “As Aves Colectivas da Margem Sul”, A Memória das Aves. Edição de autor com o apoio da Câmara Municipal de Benavente 2013 (Prémio de poesia Natércia Freire 2011).
Gosto deste poema porque constrói uma cadeia de paralelismos inéditos e eficazes enraizando um fenómeno social no seu contexto geográfico e histórico sem pretensões explicativas, mas com uma singular lucidez crítica e antropológica e uma intuição poética que resgata o processo em questão da sua reificação, restituindo-lhe cariz de vivência humana.
Ao descrever o pendularismo quotidiano de massas de trabalhadores da Margem Sul para Lisboa como a deslocação migratória de bandos de aves, o poeta ornitólogo desta recolha de líricas todas dedicadas ao homem enquanto pássaro (ao pássaro enquanto homem, numa linha mozartiana de sabedoria auto-irónica e melancólica), produz um “efeito de estranhamento” (V-effekt) que ilumina a condição de objecto anónimo a que esta prática social destitui o homem-massa dos grandes aglomerados urbanos do séc. XXI e ao mesmo tempo indica um rumo de possível recuperação da própria subjectividade pessoal e histórica, no reencontro com a dimensão de pertença natural e comunitária.
Não é o facto de serem colectivos que torna massas anónimas os homens-pássaros, mas o terem perdido a sua consciência de ser “bando”, o terem perdido o seu “conceito de espécie” como “resistência à propriedade” (ao individualismo impotente que se cristaliza num andar de propriedade, na “vastidão” privada “dos condomínios”, que se espalham na Margem Sul substituindo a paisagem industrial tradicional, eventualmente musealizando “as chaminés”: os seus rastos aproveitáveis na conservação ornamental do design arquitectónico). Há uma história atrás, era a “fraqueza” natural e histórica do “bando”, irredutível à maximização e à consecutividade funcional da lei económica (irredutível à “febre” da pressa, da pressão e da “concentração das horas”, contadas e calculadas na base da “ordem intensa” de “índices” e “flutuações”), que protegia as aves da “hecatombe sedimentada do grande planeamento directivo”, e as mantinha no “território livre” da insubordinação política à absolutização da lei económica do lucro.
Já lá vão os tempos em que a Margem Sul era o ninho livre da luta proletária contra o capitalismo. Hoje os colectivos já não são políticos mas ferroviários. A questão da qualidade dos transportes urbanos prima sobre a preocupação com a justiça social. A “queda anunciada” dos bandos “metalúrgicos” é providenciada e “esperada por bandos organizados, cá em baixo”, de gente que não gosta de voos, de céus abertos e “consequências equívocas”. O “ar é poluído”. As aves são “diariamente isoladas do seu canto”.
Contudo, será possível que as “aves ausentes” do Tejo durante gerações voltem um dia a “atravessar as manhãs”, que um “estatuto especial de proteção” seja reinstituído, e bandos fracos e livres de aves colectivas, mas que não são massa, voltem a encher o céu?
Para que isso aconteça, será preciso voltar a olhar atentamente e calmamente para o Tejo, para o céu, sem “sentido positivo para as horas”, sem "febre” de “ordem intensa” de condições “maximizadas e consecutivas”. Será preciso sair das vazias vastidões individuais da propriedade e da solidão e reencontrar o próprio “canto diariamente” negado. É o que faz o poeta e quem o lê, num acto “sulfureamente” político.
Teresa Bartolomei
Teresa Bartolomei: Italiana, casou com um português por causa de Alemanha maior, o que a levou ao limite “onde a terra se acaba e o mar começa”. Gostando de limites porque dão forma, procura testá-los nos textos em que a palavra não é meio mas fim, dentro do qual o ruído se acaba e o sentido começa.