Bem
Maria S. Mendes
Bem
No verão como na neve
De cérebro desligado
Poemas de presença
Como a luz
Poemas de aludir
Daqui até setembro não sei nada
Dançar não conta que é como sorrir.
Sebastião Belfort Cerqueira, “Bem”, El Segundo. Edição de autor, 2015.
Gosto deste poema porque compara dançar com sorrir, e “dansar é leve e intenso como diz a Teresa Amado” (Adília Lopes, Manhã). A escrita de dansar com s, para além de remeter para a Idade Média, em que esta grafia da palavra era frequente, invoca, creio, o carácter visual da palavra, mostrando o s o movimento que caracteriza a dança. Comparar dançar a sorrir permite uma leitura também gráfica da palavra, substituindo-se o movimento do spelo sorriso invocado pelo ç.
A recondução das palavras à sua forma gráfica ou a apreciação da forma gráfica como reveladora da palavra pressupõe o mesmo tipo de reacção pedida pelo poema: o verão como o tempo das férias, em que o raciocínio é desnecessário, como seria num mundo visual. A remissão é, em ambos os casos, à infância, tempo dos desenhos e da luz de presença referida na 2ª estrofe. A alusão, também aí referida, que não explicita nem exige explicação, é uma forma de compreensão intuitiva, como a referida por Susan Sontag no seu ensaio “Contra a interpretação”. A reacção sensorial ao mundo (e à arte) e a recuperação dos sentidos – “ver melhor, ouvir melhor, sentir melhor” (Sontag) – é a que é pedida pelo poema: o tempo das férias (o verão, a neve) e o tempo da infância, como aqueles em que se é feliz porque não se sabe nada (“daqui até setembro não sei nada”) e em que o apelo é sensorial. A dança é, aliás, uma das formas artísticas que apela a uma relação com a arte que não seja necessariamente intelectualizada, nem visando a procura do sentido ou da explicação racionalizada do conteúdo.
Os poemas referidos na 2ª estrofe são, também eles, “poemas de presença”, em que o que interessa é o contacto físico e não, uma vez mais, a explicação do sentido. A poesia não tem de ser explicada nem percebida de uma forma mental, mas só alusiva, podendo implicar mas não explicar. É a apologia do corpo físico relativamente ao espírito, da forma relativamente ao conteúdo, da sensação sobre a razão. Do absoluto, nunca apreensível racionalmente.
Não há, portanto, nada mais contrário a este poema do que a leitura que dele acabo de fazer.
Ariadne Nunes
Ariadne Nunes é bolseira de pós-doutoramento do IELT, com um projecto sobre os dois últimos romances de Machado de Assis, Esaú e Jacó e Memorial de Aires.