conduzi para vale de canas
Nuno Amado
conduzi para vale de canas
com uma corda
no lugar do morto
bem sei que parece tolice, mas
enquanto escolhia a árvore
recordei-me da araucária
que há anos ardeu
sentei-me onde as suas cinzas
foram sepultadas e chorei
foi assim, juro, que
por este dia me salvei
Bénédicte Houart, “conduzi para vale de canas”, Vida: Variações II. Lisboa: Cotovia, 2011.
Qual é o meu lugar, quando eu, leitor, estou diante de um texto escrito na primeira pessoa? Assumo o lugar daquele que o enuncia, ou este, embora formalmente eu, permanece um outro que não é apropriável pelo meu olhar, pela minha voz e pela minha presença?
conduzi para vale de canas
com uma corda
no lugar do morto (…)
Quem conduziu? À minha consciência de leitor, qual é o sujeito que aqui é suscitado? Eu? É improvável. Não há aqui nenhuma relação de coincidência, sequer de proximidade: o eu de quem enuncia não se substitui ao eu de quem lê, suscita, antes, o espaço de uma diferença que encontra no texto um ponto provisório de intersecção. O texto é o lugar do outro e este é, de facto, o lugar do morto: aquele que morreu, aquele que vai morrer, aquele cuja vida ou cuja morte constitui uma ameaça. Este será também o lugar da escrita, o espaço de uma intimidade que só se materializa na sua mais expressiva exterioridade: o espaço da língua e das suas metamorfoses, o espaço de ninguém.
Neste sentido, o lugar do morto é o lugar simbólico da sua realização como acto ou como escrita, ou seja, como coisa e como representação. Mas a morte, tal como qualquer forma de outro, não é um dado, é preciso construí-la: comprar a corda (ou roubá-la, ou recebê-la por herança, ou simulá-la, como se simula, como se recebe, como se rouba a própria língua) e transportá-la com a determinação de quem já não a distingue da sua vida.
Mas o outro é também uma figura do impossível: o seu espaço e a sua presença são o que não se diz na minha língua, o que não cabe nas minhas representações, o que não se diz em nenhuma língua porque, embora a funde, escapa à possibilidade de aí ser representado. Vale de Canas, uma mata nos arredores de Coimbra, é aqui um lugar cénico, mas não de encenação: o juro que garante a veracidade ou a verosimilhança do acontecimento é tanto o instrumento retórico de quem pretende afirmar a verdade do que enuncia como o subterfúgio do mentiroso que pretende persuadir. Neste sentido, aquilo que é enunciado na primeira pessoa do singular (mas um eu que nunca é aqui explicitamente enunciado, um eu suposto e retraído) funciona como dispositivo estratégico: é preciso acreditar na encenação, do mesmo modo que é preciso fazer de conta que é encenado aquilo que, intuímos, talvez seja obscenamente verídico.
O registo voluntariamente coloquial e a concisão da formulação verbal produzem aqui um acréscimo de verosimilhança: o que é narrado pode ou não ter acontecido. Uma aproximação biográfica poderia esclarecê-lo, mas ela seria aqui contraproducente. O que está em causa é um dispositivo representacional que constrói a espessura e a realidade do narrado: os onze versos curtos adquirem uma força simbólica que ultrapassa a distinção entre o factual e o ficcional. Excepto no plano estritamente biográfico (é possível pretender que esse é o único que interessa, mas esse é aquele de que nenhum texto consegue apoderar-se), importa pouco saber se alguém algum dia conduziu até Vale de Canas à procura de uma árvore. Enquanto construção simbólica, alguém comprou, alguém conduziu, alguém ficou suspenso da sua própria dor.
Helder Gomes Cancela
Helder Gomes Cancela nasceu em 1967. Publicou, entre outras obras, os romances Impunidade, As Pessoas do Drama (Relógio D’Água), e o ensaio O Exercício da Violência (Companhia das Ilhas). Em 2018 publicou A Terra de Naumãn (Relógio D’Água). É atualmente professor na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.