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Uma inocência

Poemas de agora

Uma inocência

joana meirim

 

Uma inocência

 

Aves devoram o lixo.

Debatem-se sob o peso da gula

investindo ciladas, disposições

 

de onde se isenta a alma.

Flap, flap, flap, fazem asas

no negro plástico. Tu paras.

 

Por vontade alheia observas.

Por aforismos sagras

as razões dos que desesperam.

 

O que faz a poesia?

Remir e remir e remir

como as asas espancando

 

o negro plástico, flap, flap, flap.

Sagras as razões

dos que desesperam,

 

as implicações disfóricas

da imaginação, o mundo

extinguindo-se como a luz

 

do quarto de infância,

o sumptuoso plástico espancado,

aquilo a que viraste costas

 

e que não teima existir.

O que faz a poesia?

Remir por certo tipo de palavras

 

certo tipo de coisas certo tipo

de asas flap flap flap certo tipo

de razões desesperadas.

Luís Quintais, “Uma inocência”, Angst. Lisboa: Cotovia, 2002. Aqui publicado com autorização do autor.

Gosto deste poema porque é sobre um “certo tipo de coisas” e um “certo tipo de palavras”. Aquele certo tipo de coisas poderá relacionar-se com plásticos, vidros, metais (“lixo”); este certo tipo de palavras poderá articular-se com o ofício da poesia e o do poeta (“O que faz a poesia?/ Remir e remir e remir/ como as asas espancando”). O modo distinto como essa ligação é percebida poderá abreviar-se nisto: o poema é feito a partir de um certo tipo de palavras que, procedendo da sujidade e do monturo, deles se liberta violentamente. Duas actividades – fazedores de palavras e fazedores de lixo – exclusivamente humanas e que, numa leitura atenta, não deixam de favorecer estranhas correspondências.

Neste poema, a realidade parece ser desenhada, num primeiro momento, como um lugar ermo (“o mundo extinguindo-se como a luz”), contaminado e sabotado (“as implicações disfóricas da imaginação”), semelhante ao “negro plástico”, que causa no poeta uma sensação de angústia e mal-estar, donde o título da obra. Talvez por ser assim, a realidade surge como uma cloaca, isto é, simultaneamente, esgoto e ventre. Daí a possibilidade de uma atmosfera de resgate que provoca no poeta o desejo de libertação e transformação da matéria num certo tipo de palavra, espécie de lótus nascido das águas turvas e lodosas.

Num segundo momento, denunciado pelo hiato em branco do papel – espécie de respiração funda e ampla, antes de mergulhar –, o poeta continua e adere a uma nova etapa (“o mundo extinguindo-se como a luz / do quarto de infância,”): vira as costas ao que “não teima existir”, a infância, e move-se de forma quase inorgânica. A pergunta impõe-se: “o que faz a poesia?”; até onde hei-de construir, criar, transfigurar? A resposta desarma o leitor: de forma simples e condensada, o poeta realiza este movimento de desilusão sem despiste. Observa, sem ilusões, o presente decaído, dilacerado e farto (“debatem-se sobre o peso da gula”) e, movendo-se nas trevas do monturo, supera-o e transfigura-o através da combinação exacta entre um “certo tipo de palavras” e um “certo tipo de coisas”.

Neste sentido, “Uma inocência”, poema que fecha a segunda parte de Angst, intitulada “Dobra”, ocupa uma posição concreta no livro que parece sugerir um desenvolvimento lúcido da arte poética de Luís Quintais. Aqui, parece cumprir-se o princípio da condensação de uma poesia que se dobra sobre si mesma, enquanto exercício de questionamento e de procura do “sentido na dobra da página”, tal como indicado pelo poeta no poema que abre a segunda parte da obra, “Soundblindness”.

Aliás, a força agónica e condensada do primeiro terceto (“Aves devoram o lixo./ Debatem-se sob o peso da gula/ investindo ciladas, disposições), aliada ao carácter inquiridor do verso “O que faz a poesia?”, transporta o leitor para o desdobramento reflexivo encontrado no uso de um “certo tipo de palavras” e de um certo tipo de figuras de linguagem. Na verdade, a preferência por um modo de dicção simples e conciso, resgatando a prática do aforismo (“Por aforismos sagras/ as razões dos que desesperam.”), revela uma poética que combina a intensidade da sentença breve com a capacidade de nomear, actividade tão própria do poeta. Actividade peculiar, antecipada no poema pela sentença “Tu paras”, espécie de estiramento da atenção do poeta, que, gravitando num eixo temporal disfórico, dele se afasta. O poeta detém-se e observa. O momento de paragem (“Tu paras”) está para o acto de concentração e condensação do poeta, tal como o instante de sagração, que lhe segue (“Por aforismos sagras”), está para o ofício de um certo tipo de poesia. Dir-se-ia um ofício espagírico, isto é, um fazer que do monturo extrai o aljôfar, a pérola.

Deste modo, torna-se legítimo o duplo sentido da onomatopeia, cuja força não se esgota na recriação sonora do movimento das asas (“certo tipo de coisas certo tipo/ de asas flap flap flap certo tipo/ de razões desesperadas.”), pois a sua consciente utilização (onoma, que quer dizer “palavra, nome”, e poiein, que significa “fazer”) reforça igualmente o tópico da criação a partir de palavras, nomes e sons. Portanto, este revolare remido – um voltar a voar – não prescinde do elemento agónico da revolução: o poeta já não é a ave, mas o movimento específico e sonoro das suas asas combativas. Este modo de fazer poético permite ver na amputação da ave um gesto lírico novo (o poeta já não é a ave canora, mas uma asa que espanca), cujo tom de libertação violenta – esse Agon, que é, curiosamente, o título do seu mais recente livro – concede ao movimento alado uma leitura muito peculiar, a do poeta como incinerador. Em suma, um certo tipo de movimento (asas violentando a matéria) combinado com um certo tipo de palavras reduz um certo tipo de coisas (lixo) a cinzas. Desta morte acontece o nascimento de um outro mundo, cerzido por um certo tipo de palavras. E assim a poesia, aliás, um certo tipo de poesia.

 

Sofia A. Carvalho


Sofia A. Carvalho é doutoranda no Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa. Tem uma paixão pelo teatro que a levou a sair do lugar de espectadora e a frequentar o Curso de Formação de Actores. Escreve, dança: coisas que gosta de fazer, tanto quanto de ler.

 (A autora deste texto é financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, com uma Bolsa de Doutoramento com a referência SFRH/BD/120804/2016)