Rua Doménikos Theotokopoulos
joana meirim
Rua Doménikos Theotokopoulos
Ao fim do dia
quando o róseo edifício dos banhos
fica magoado de som
e o paredão do mar se confunde
com as sirenes que se derramam ao longe
restam as ruas estreitas dedicadas aos
pintores de ícones
perto de Kunkapi, o bairro mais pobre –
a sinagoga, paredes meias, nunca foram
ricos os judeus da cidade
a cintar todas as casas, ao modo de
um fosso, a Rua de Minos abre singela
passagem para o Bairro das Luzes
Vermelhas
Alexia, Anna e também Maria
aguardam nas suas casinhas de prazer
fantasias de qualquer realista –
na parede, a negro – fuck the polis
João Miguel Fernandes Jorge, “Rua Doménikos Theotokopoulos”, Fuck the Polis. Lisboa: Relógio D’Água, 2018. Aqui publicado com autorização do autor.
Local 1
O mais recente livro de João Miguel Fernandes Jorge acaba como começa.
No último poema, que termina com a citação de um grafito (“Fuck the polis”), a segunda estrofe parece explorar traços reconhecíveis de Chania, a segunda maior cidade da ilha de Creta: se for assim, bate certo com a Rua Doménikos Theotokopoulos estar situada junto à linha costeira e a menos de 20 minutos a pé da Rua de Minos, que fica para leste. Encontra-se por perto o bairro vermelho e a oferta de serviços por Alexia, Anna e Maria (“Alexia was always my favorite when I visited Chania a few years ago”, “Alexia is now located at No. 5 instead of No. 19. Unsure if this was the same Alexia or someone using the same working name”).
Decisivo para a localização do que se diz na estrofe anterior é Kunkapi, possivelmente Kumkapi, um bairro de Istambul hoje conhecido pelos seus restaurantes de peixe. Se isto fizer sentido, outro ponto de referência será um edifício de banhos públicos masculinos, talvez Sifa Hamami, na zona de Fatih, bem à beira do mar de Mármara, do qual a cidade fica protegida por um paredão. Na mesma zona fica precisamente o bairro de Kumkapi, e a uns cinco quilómetros a sinagoga Balat Yanvol, de modesta aparência.
Segundo este jogo de tiro ao alvo, a primeira estrofe olha então para Istambul, a segunda para Chania, 1411 km de carro entre as duas cidades, 747 km de avião. Mas são apenas 8 mm de espaço em branco entre as duas estrofes, 8 mm atravessados pela rua que dá título ao poema, com o nome por que não ficou conhecido El Greco.
Aqui as pessoas são adereços do espaço, uma convertida em placa de topografia urbana, os pintores de ícones um adorno de bairro, Alexia e as outras atributos de rua. Tudo localizado. A paisagem impera neste modo de ver, como diz João Miguel Fernandes Jorge noutro poema de Fuck the Polis: “Em viagem / apenas me interessa a geografia e a / história ao redor, quanto aos humanos / eles estão para mim como a paisagem, / de certo modo mortos vivos em // volta. Nada lhes digo, nem quero que / digam” (p.36). Está bem. Mas gostava, ainda assim, de saber mais acerca de quem fez o grafito. Istambul tem 15 000 000 habitantes, pouco mais de 100 000 pessoas vivem em Chania. Se até uma cidade com a dimensão de Chania ocasiona um grafito assim, para onde quer ir quem o inscreveu na parede a negro? Se ele/ela para nós não for paisagem, onde quer viver?
João Dionísio
João Dionísio dá aulas de Literatura Portuguesa e de Crítica Textual na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.