Os Gatos
Nuno Amado
Os gatos
Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem
Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa
Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos
Manuel António Pina, “Os gatos”, Como se desenha uma casa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2011.
Gosto deste poema porque nele reconheço os felídeos que tantos lares povoam. O seu objecto é o gato doméstico, regente das nossas casas, “mundo efémero / onde estamos de passagem”. Os dois primeiros versos apresentam – assim os ouço desde a primeira leitura – semelhanças formais com o segundo verso do “Penúltimo Poema” de Alberto Caeiro: “Há em cada coisa aquilo que ela é que a anima.” Se, no poema de Caeiro, há em cada animal, animando-o, “um ser interior longínquo”, uma espécie de infraconsciência ou de interioridade incipiente, vulgo instinto, neste poema de Manuel António Pina há em cada gato um deus. Nesse sentido, também de acordo com a taxinomia proposta no poema de Caeiro, o gato está mais próximo do deus do que do animal: “Por isso os deuses não têm corpo e alma / Mas só corpo e são perfeitos. / O corpo é que lhes é alma / E têm a consciência na própria carne divina.” O gato “inconcreto” – referência não só a qualquer gato, ao gato universal, mas também ao lugar-comum do gato esquivo, tão maleável, ágil e veloz, que quase duvidamos da sua consistência – é, afinal, um gato “único e secreto” graças ao deus que o anima – talvez o mesmo deus pelo qual todo o gato “se cumpre como gato”, para citar Agostinho da Silva, amante de bichanos, e em tempos entrevistado pelo autor deste poema para um programa de televisão.[1]
Os aposentos do gato são a casa do humano, território que, dado o pequeno porte do Felis catus, não pode deixar de ser vasto, e o qual ele percorre e vigia diariamente. “Nervos, ausências, pressentimentos” designam o comportamento do deus gato nos seus aposentos: ele enerva-se, ausenta-se, podendo esconder-se ou escapar, pressente perigos, partidas e chegadas, presenças. Encontro uma das imagens mais felizes deste poema gracioso no verso “e de longe nos observa”, verificável por qualquer humano que já se tenha introduzido no domicílio de um gato: mais cedo ou mais tarde, achar-se-á observado pela estátua felina, bem-posta no lugar cimeiro ou distante de onde pode controlar o seu domínio e os “bárbaros” que o invadem – “amigáveis” porque, entre outras coisas, cuidadores. Um dos modelos literários da imagem do gato que fita à distância é o gato de Cheshire, o observador altaneiro e trocista de Alice no País das Maravilhas, tão «inconcreto», que dele muitas vezes só um sorriso divisamos. Outra descrição precisa da singularidade da coabitação do bicho homem com o deus gato pode ler-se no último verso do poema. Salvo as excepções que sempre se verificam no mundo natural, e às quais, a respeito desta espécie, se dá por vezes o nome de “gato carente” (o qual não se cumpre menos como gato do que os seus congéneres mais desprendidos), o comum dos gatos não se deixa tocar sempre que nos apetece, nem de qualquer maneira – o que nos pode ficar gravado na pele, como lembram a propósito os versos de Alexandre O’Neill: “Que deus te deu a repentina unha / Que rubrica esta mão, aquela cara?”. Permitir-nos, enfim, “a ilusão de que o tocamos” não pode ser senão um acto de compaixão, digno dos deuses, antigos como os gatos e, como eles, compassivos conforme calhava.
Ana Cláudia Santos
Ana Cláudia Santos trabalha na Imprensa da Universidade de Lisboa, e faz outras coisas nos tempos livres. Doutorou-se e escreveu sobre Giambattista Vico, cuja autobiografia traduziu. Nunca conseguiu destruir os poemas que escreveu em criança, e continua a ter um fraco pela rima.
[1] https://arquivos.rtp.pt/conteudos/conversa-com-manuel-antonio-pina/