The Key
joana meirim
The Key
Janus two-faced god of folds and joints
hinges thresholds and enjambements
who has in his keeping lids locks doors
dawns dusks and all our various
exits and entrances it wasn’t you
but Anastasio the old Salernitan
who handed me the key
the size of a cudgel its epic profile
wore holes in my secondhand raincoat
I then had to sew up with sackcloth
a cold iron tongue that should have turned
the stony earth or sprung the gates of Dis
but opened the vaulted flat that dated back
to the days of Torquato Tasso
in the street named after him.
Someone must be carrying that key
someone this late at night be walking through
the alleys past the Duomo’s
bronze-nailed wooden door
up the worn steps with their rusted railings
stopping to drink from the slender wire that spills
out of the lion face’s open mouth
in the small square awned by palm fronds
before feeling in their pockets for the key.
His brother who owned the key
that opened the flat with its vaulted ceiling
was in jail at Poggioreale Naples
since his lock-up
had been found full of semi-automatics
but Anastasio said his ignorance
was no defence against the law –
ma si che era innocente... ci mancherebbe altro!
He unlocked the iron door to show the flat
blackened by the open brazier
the lacquers and gamboges that Enzo
the furniture restorer used
in the room with the balcony that overlooked
a sunken courtyard and a pomegranate tree
two Alsatians were chained to – a two-headed
Cerberus permanently hoarse
the only neighbours I ever saw
apart from a rat who gnawed at the bedroom door
geckoes suction-fixed to the ceiling
and scorpions who brandished claws
and twitched alembic tails in warning
like guardians of the underworld.
Anastasio gave me a tube of black glue
I never used to trap the rat
and in case I had doubts
the house he reminded me was augurioso
on account of the ex-convent opposite
no matter it was now a brothel
but didn’t say the place would live in me
far longer than I lived in it.
The day he showed me round the flat
he lifted a marble slab in the floor
on a square of darkness and said beneath
there was another slab that opened on
one more square of black and so on down
past centuries of settlement
into the heart of the rock
until… and there he stopped unsure
but here’s the key he said
I hope you’re happy here.
Someone must be carrying the key
I still keep fishing in my pockets for
whose phantom weight
has left me bent or skewed
but maybe I never gave it back
it still turns anticlockwise in the lock
and opens a door as heavy as air
onto the dazzling dark on dark.
Jamie McKendrick, “The Key”, Crocodiles & Obelisks. Faber and Faber: 2007.
Os romanos da antiguidade costumavam construir pequenos cofres que se abriam por encaixe, com combinações que eram como puzzles. Estes encaixes não funcionavam, portanto, como as nossas chaves normais. Imagino que o mecanismo seria mais próximo do dos cofres de hoje: o que ficava trancado estava guardado em segurança, podia viajar muitas milhas e ser decifrado por quem quer que soubesse a combinação de gestos que podiam abrir o fecho. Aparentemente, estes eram pequenos objectos, por vezes do tamanho de anéis. Supor-se-ia que os romanos, dados como eram a segredos e a coisas misteriosas e violentas, guardavam qualquer coisa nestes cofres minúsculos, mas os registos arqueológicos sugerem que estes continham, na maior parte dos casos, dinheiro que era enviado a parentes distantes. Pergunto-me quanto desta ideia de que uma sucessão de gestos pode abrir coisas inesperadas é uma boa metáfora para pensar acerca do que os poemas nos fazem, mesmo que à primeira vista possa parecer que isso funciona melhor como descrição daquilo que os críticos literários fazem pelos poemas.
João Dionísio, que escreve nesta revista, notava que o acto de interpretar um poema era um exercício de memória e circulação. O poema a que esta nota de leitura se refere demonstra que também os poemas por vezes funcionam assim.
“The Key” foi publicado por Jamie McKendrick em 2007, no livro Crocodiles & Obelisks. A dita chave abre a porta de um apartamento em Salerno e por isso é, ao contrário dos cofres-puzzle dos romanos, uma chave que à partida parece abrir uma porta literal, embora nos seja dito que esta se parecia com a chave que podia abrir os portões do Hades. Pode dizer-se que “The Key” é sobre a tonalidade mítica que os objectos que carregamos todos os dias podem assumir. A partir deste primeiro ponto, é um poema sobre presenças e ausências, a passagem do tempo, corpos, empregos, ruas, irmãos, ser estrangeiro, as diferentes dimensões do tempo, fantasmas, romãs, técnicas para preparar armadilhas para apanhar ratazanas, em conclusão, todas as coisas inesperadas que se escondem atrás de portas.
Nos primeiros versos, o narrador dirige-se a Jano, o deus romano bicéfalo que era o guardião das portas, entradas e saídas e que apontava ao mesmo tempo para o passado e para o presente, para nos dizer que não tinha sido esse o deus que lhe tinha confiado a chave mas Anastásio, um velho de Salerno. A invocação de Jano pode ou não vir com um eco das linhas de abertura dos Fastos de Ovídio e transporta-nos para o mundo da literatura imperial romana, mas, claro, a alusão gera um efeito algo cómico: não é um deus, mas apenas o velho Anastásio de Salerno quem entrega ao narrador a chave. O tom antiépico que aqui se atinge, no entanto, tem o efeito secundário de saturar todas as personagens do poema com cores míticas, como se pertencessem à mesma linhagem imortal dos deuses romanos, o que faz sentido quando pensamos nisso com cuidado.
Pode ou não haver um eco dos Fastos de Ovídio nos primeiros versos, mas um dos motivos pelos quais este foi um dos poemas que mais gostei de ler em 2018 tem que ver com o facto de que todas as personagens do poema, mesmo aquelas que habitam um mundo cujas cores são reminiscentes dos quadros de Caravaggio e dos seus seguidores, parecem ter aquela dignidade que encontramos noutro poema de Ovídio, Filémon e Báucis, que no episódio das Metamorfoses não pedem aos deuses a imortalidade, mas apenas para que lhes seja permitido continuarem com as suas vidas juntos e para morrerem ao mesmo tempo. Quer isto dizer: “The Key” é também um poema sobre a dignidade humana, e o respeito, a admiração e a empatia que as pessoas nos podem inspirar, mesmo aquelas cujas vidas são completamente paralelas às nossas, mas também o bom humor e uma impressão de “terra-à-terra” que vem com isso.
Salerno é uma cidade que pertence à região onde estão alguns dos povoamentos urbanos mais antigos da Europa, e os antigos romanos acreditavam que era num sítio não muito longe de Salerno, perto de Cumas, numa cratera no lago Averno, que se podia descer ao inferno. Na Eneida, é nesse local que Eneias segue a Sibila para aceder ao mundo dos mortos e escutar as suas profecias. Não creio que alguém possa viver nesta região ou visitá-la sem se recordar que nela os mitos do submundo e a vida de todos os dias se tocam. Umas quantas imagens no poema evocam esta noção, mas talvez nenhuma o faça tanto quanto aquela que descreve como, no dia em que Anastásio mostrou o apartamento ao narrador, ele levantou uma laje de mármore do chão e lhe disse que outra laje “abria / para outro quadrado de negro” e outra depois dessa, e outra, provavelmente até descer ao inferno, dando testemunho de séculos de habitação continuada. Para efeitos algo cómicos, Anastásio é representado em termos que recordam a Sibila de Cumas. E é então que percebemos que “The Key” é um poema sobre o lado esquivo da superficialidade e da profundidade, a profundidade que podemos intuir acerca dos modos como habitamos espaço e tempo, e o constante tiquetaque da vida, o seu movimento perpétuo (que está tão bem descrito na última estrofe e que é um dos motivos pelo qual o poema é tão gracioso), porque, como nos é dito, alguém ainda deve ter aquela chave que o narrador continua a buscar nos próprios bolsos. O poema termina em deslumbrante escuridão e é assim que se torna ele próprio vivo, mais do que apenas palavras numa página. Penso que todos algures devemos ter tido uma destas chaves. Parece-me irónico, mas também muito apropriado, que Jamie McKendrick seja o tradutor inglês de Atrás da Porta de Giorgio Bassani, uma novela sobre um jovem que num momento crucial não tem coragem de escancarar uma porta. “The Key” é de muitas formas um poema sobre o exacto contrário disso.
Tatiana Faia
Tatiana Faia estudou estudos clássicos e é autora de quatro livros, um de contos e três de poesia. Vive em Oxford e é uma das editoras da Enfermaria 6.