Poemas de agora
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O que Eu Bebi por Você
Maria S. Mendes
O que Eu Bebi por Você
O que eu bebi por você
Dá pra encher um navio
E não teve barril
Que me fez esquecer
O que eu bebi por você
Nunca artista bebeu
Nem pirata bebeu
Nem ninguém vai beber
O que eu bebi por você
Quase sempre era ruim
E bem antes do fim
Eu já estava à mercê
O que eu bebi por você
Me fazia tão mal
Que já era normal
Acordar no bidê
Cada dono de boteco e catador de lata agora te sorri agradecido
Se o seu plano era contra o meu fígado, meu bem, você foi bem sucedido
Parabéns pra você
Clarice Falcão, “O que Eu Bebi por Você”, Monomania, Sony. Chevalier de Pas, 2013.
Gosto deste poema porque não se parece com um poema bom. Consistindo numa enumeração de coisas (algo normal em poemas) motivadas pela acção de beber por causa de um homem, começa logo com uma imagem muito rudimentar, na qual se mede quantidades de líquidos com recurso a um “navio”. Os versos seguintes apresentam, no entanto, uma nuance, por deixarem em aberto a possibilidade de a autora continuar a beber: se nenhum barril a fez esquecer e se ela bebe para esquecer, depreende-se que a tentativa de esquecimento prossegue. Nesse caso, convém perguntar o porquê do uso do pretérito, uma vez que o pretérito faz antever que o problema com o álcool é coisa passada.
O que torna o poema interessante, e próximo da melhor poesia, é a suspeição de que aquilo que parece óbvio não o é e, neste caso particular, o que me interessa perceber é o estado anímico em que se encontra a autora: está viva ou morta? Naturalmente, o que me desperta a atenção é a suspeita de que, por causa desses versos sobre o barril, está morta; a suspeição aumenta com os versos sobre artistas e piratas, dois tipos de personagem ligados à ficção, que parecem acentuar um contraste: personagens ficcionais podem beber muito, eternamente, até, mas a comparação empalidece quando comparamos os problemas ficcionais com a realidade. Os versos finais, estruturalmente diferenciados dos restantes pelo número mais longo de sílabas, parecem demonstrá-lo, notando que problemas de fígado podem ter consequências gravosas para personagens não-ficcionais: aquilo sobre o que se canta não são as tropelias de piratas ou artistas alcoólicos, mas a incapacidade de esquecer alguém através da ingestão de álcool de fraca qualidade — a falta de fundos é sempre um problema para alcoólicos — e as cenas tristes que se seguem ao consumo exagerado — a amizade com bidés, por exemplo. Não é por isso certo que o “fim” (no verso “E bem antes do fim”) seja o do consumo de álcool. Pelo contrário, parece-me que esse “fim”, que é coincidente com o fim do sofrimento, é o fim da vida e só nesse sentido representa o fim do consumo de álcool, algo demonstrável pelo antepenúltimo verso, em que quem enriqueceu às custas da autora (“donos de boteco” e “catadores de lata”) se ri apenas para o homem (presumivelmente porque ela está ausente). Além de todas as piadas que podemos discernir nos versos deste poema, a anedota maior é a pessoa que fala estar morta; e não é, aliás, fortuito que esta morta escreva em versos: o espaço de eleição para mortos se exprimirem é a poesia.
Este não é um poema bom apenas por, como alguém afirmou uma vez, todos os poetas bons estarem mortos; é-o, sobretudo, porque explora a possibilidade, muito concreta, de poemas, enquanto descrição de uma vida, poderem precisar de um falecimento para existir. Há casos, e este parece um deles, em que só é possível sermos artistas depois de mortos, porque só retrospectivamente é que a nossa vida tem interesse; nesse sentido, como se exprime naquela que é a verdadeira anedota do poema, algumas pessoas só conseguem ascender a poetas depois de o seu fígado cessar funções.
Telmo Rodrigues
Telmo Rodrigues é doutorado pelo Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras, com a tese For a Lark: The Poetry of Songs, na qual explora as relações entre a música popular e a poesia. É actualmente director da revista Forma de Vida.
Pa’lante
Maria S. Mendes
Oh I just wanna go to work —
And get back home, and be something
I just wanna fall and lie —
And do my time, and be something
Well I just wanna prove my worth —
On the planet Earth, and be, something
I just wanna fall in love
Not fuck it up, and feel something
Well lately, don’t understand what I am
Treated as a fool
Not quite a woman or a man
Well I don’t know
I guess I don’t understand the plan
Colonized, and hypnotized, be something
Sterilized, dehumanized, be something
Well take your pay
And stay out the way, be something
Ah do your best
But fuck the rest, be something
Well lately, it’s been mighty hard to see
Just searching for my lost humanity
I look for you, my friend
But do you look for me?
Lately I’m not too afraid, to die
I wanna leave it all behind
I think about it sometimes
Lately all my time’s been movin slow
I don’t know where I’m gonna go
Just give me time, I’ll know
Oh, any day now
"All died dreaming hating and waiting
Dead Puerto Ricans
Who never knew they were Puerto Ricans
Who never took a coffee break
from the tenth commandment
to KILL KILL KILL
the landlords of their cracked skulls
and communicate with their latin souls
Juan
Miguel
Milagros
Olga
Manuel
From the nervous breakdown streets
where the mice live like millionaires
And the people do not live at all"
From el barrio to Arecibo, ¡Pa’lante!
From Marble Hill to the ghost of Emmett Till, ¡Pa’lante!
To Juan, Miguel, Milagros, Manuel, ¡Pa’lante!
To all who came before, we say, ¡Pa’lante!
To my mother and my father, I say, ¡Pa’lante!
To Julia, and Sylvia, ¡Pa’lante!
To all who had to hide, I say, ¡Pa’lante!
To all who lost their pride, I say, ¡Pa’lante!
To all who had to survive, I say, ¡Pa’lante!
To my brothers, and my sisters, I say, ¡Pa’lante!
¡Pa’lante!
¡Pa’lante!
To all came before, we say, ¡Pa’lante!
Hurray for the Riff Raff, “Pa’lante”, The Navigator, ATO Records. 2017.
Gosto deste poema porque a sua qualidade não depende das coisas óbvias que se lhe apontam. Ocasionalmente, a boa poesia tem sido descrita como honesta e compatível com a essência do seu autor: quanto mais do autor descobrimos num poema, melhor a qualidade (ou algo parecido). Também ocasionalmente, mas não necessariamente ao mesmo tempo, a poesia boa tem sido descrita como obrigatoriamente política: quanto mais reflectir a sociedade em que se insere, melhor é (ou algo muito parecido). Este poema, aparentemente, colige estes dois factores: o alto teor de pessoalidade e a necessária intervenção cívica.
The Navigator (2017), sexto álbum dos Hurray for the Riff Raff, é especial por interromper aquilo que a autora, Alynda Segarra, vinha a fazer nos discos precedentes: depurar estruturas musicais da folk americana. Este, ao invés, vem marcado pelos sons latinos. Neste poema em particular, o título aponta logo para as raízes latinas de Segarra: “Pa’lante” é a contracção de “para adelante”, uma expressão comum entre membros da comunidade porto-riquenha. Mas essas influências latinas também vêm pela voz do poeta Pedro Pietri, que declama na canção parte do seu poema mais famoso, “Puerto Rican Obituary” (o poema recitado é truncado em relação à versão escrita) — a ligação às raízes, como bónus, é feita da forma mais digna: através da poesia.
Esta latinização é temática, para começar, mas é também estilística, ao assumir, numa expressão retirada do poema de Pietri, o “broken english” da condição bilingue de Segarra. A explicação vem do poema de Pietri: “They are dead / and will not return from the dead / until they stop neglecting / the art of their dialogue— / for broken english lessons / to impress the mister goldsteins— / who keep them employed”. Ao contrário do que presumimos normalmente acerca de poesia, acerca do requinte estilístico, o que aqui se aceita desde logo é que o refinamento do inglês é pernicioso (politicamente, como forma de subserviência, mas também esteticamente, no poema, que replica expressões da língua materna como parte integrante do discurso — e isso acontece em Pietri e em Segarra). O poema de Segarra, de um certo ponto de vista, não passa de uma enumeração de clichés: a descrição de que a autora só quer ser alguém, a ideia de que a morte pode ser algo bom, o poema de Pietri como forma de ligação às suas raízes ou a ideia de que sem a nossa herança nunca seremos ninguém. Só deixa de ser um cliché quando Segarra diz “el barrio” e “Arecibo” e depois faz a rima interna em inglês perfeito: “Marble Hill” e “Emmett Till”; quando ela pronuncia os nomes próprios “Julia” e “Sylvia”. A partir desse momento, e retrospectivamente, tudo o que foi dito tem de ser reavaliado.
Para este ser um poema bom é necessário, por um lado, ouvi-lo na voz de Segarra (como, aliás, o de Pietri precisa da voz do autor); por outro lado, é necessário compreender que os melhores poemas podem ser construídos a partir de erros (no caso, dificuldades em lidar com uma segunda língua). A qualidade está latente não nos significados — tudo é óbvio, nesse sentido —, mas nas nuances vocais. De todas as coisas que se disseram deste disco, a minha preferida continua a ser que para o fazer Segarra se rendeu às suas influências de adolescência: ser porto-riquenha e punk em Nova Iorque. Quem estranhar que este poema é o resultado destas duas características, claramente não percebeu nem o que é a poesia nem o que é o punk.
Telmo Rodrigues