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Ó meus castelos de vento

Poemas de antes

Ó meus castelos de vento

Maria S. Mendes

 

Ó meus castelos de vento

Que em tal cuita me pusestes,

Como me vos desfizestes!

 

Armei castelos erguidos,

esteve a fortuna queda

e disse: Gostos perdidos,

como is a dar tão grã queda!

Mas, oh! fraco entendimento!

Em que parte vos pusestes

que então me não socorrestes?

 

Caístes-me tão asinha,

caíram as esperanças;

isto não foram mudanças,

mas foram a morte minha.

Castelos sem fundamento,

quanto que me prometestes,

quanto que me falecestes!

 

Sá de Miranda. Poesia e Teatro, selecção, introdução e notas por Silvério Augusto Benedito, Bibliotea Ulisseia de Autores Portugueses, s/d.

Este poema nunca devia ter sido esquecido (e provavelmente não foi) porque cruelmente descreve o confronto entre aquilo que somos e aquilo que gostaríamos de ser. O que gostaríamos de ser são os castelos de vento; o que somos é “fraco entendimento”, e castelos desfeitos. É, pois, um poema cruel.

O poema é um vilancete, encabeçado por um mote de três estrofes, e um exemplo das modernices poéticas que os Poetas do Cancioneiro Geral introduziram em Portugal. A sintaxe é magnificamente intricada, uma renda pontuada por pronomes pessoais átonos (“como me vos desfizestes”; “que então me não socorrestes”; “quanto que me prometestes, quanto que me falecestes”) que tornam a tradução para inglês uma tarefa primorosamente difícil, de resultados necessariamente parcos.

Disse que o poema era cruel, e disse-o por dois motivos principais. Primeiramente, porque descreve um momento cruel da vida que outros igualmente identificaram. James Baldwin, que penso poder dizer com segurança nunca terá lido Sá de Miranda, dizia “we are cruelly trapped between what we would like to be and what we actually are” (negritos meus). O advérbio “cruelmente” é bem aplicado, por não ser certa a possibilidade de alguma vez conseguirmos sair do estádio de permanente dialética entre castelos de vento e a dura luz da realidade. Sá de Miranda não só parece indicar que este doloroso estádio dura para sempre como descreve a crueldade com requinte e pormenor: usa um doloroso vocativo para invocar os seus castelos, como se eles ainda existissem (“ó meus castelos de vento”) e diz que a fortuna não o impediu de construir “castelos erguidos”, de tal forma que o poeta pensou que era desta que os seus “gostos perdidos”, pecados, dores, caíam e o deixavam em paz, mas não, não foi desta. O peso da desilusão é avassalador, reificado na dolorosa imagem de castelos que se desvanecem ao vento e no recurso à semântica da destruição (“morte minha”, “falecestes”).

A memória da interpelação do poeta aos seus “gostos perdidos” (“como is a dar tão grã queda!”) apenas sublinha o peso da desilusão; o “fraco entendimento”, que o abandonou, permitiu-lhe a construção dos castelos, erguidos mas ilusórios, e apenas aumentou o fragor do desmoronamento. Morrem os castelos e inicia-se um período de aprendizagem, o de aprender a viver de olhos abertos. E porém, o lamento condoído pela perda dos castelos e a dor dessa memória exemplificam bem que, não se podendo viver em castelos de vento, não se poderá porém viver sem eles. Por um lado, a realidade mata a esperança, que “caiu” ao poeta; por outro, a memória dos castelos e a força da sua narrativa impõem também a sua realidade, e desta dialética, palavra que me parece importante repetir, não se sai. Em Another Woman, Woody Allen perguntava se a memória é algo que se tem ou algo que se perde. Ao manter viva a memória dos castelos falecidos, Sá de Miranda parece querer dizer que a memória é algo que se tem, e que portanto constitui a sua realidade.

A segunda razão para designarmos o poema por “cruel” é pela beleza da escrita. Há coisas que são tão belas que são uma facada no nosso coração. Têm uma certa crueza quase insuportável e  a ciência explica isto, ao dizer que, por exemplo, quando estamos apaixonados ou comemos muito chocolate, libertamos uma hormona chamada ocitocina. Este poema é assim, provoca muita ocitocina. Não fosse esta explicação grandemente científica, poder-se-ia dizer que há algo aqui de sobrenatural ou divino, isto é, a unidade do poema é tão irrepreensivelmente bela que impõe a sua verdade de forma indisputável, nos termos em que Shelley, em A Defence of Poetry, declarou “poetry is indeed something divine”, e o poeta o “rouxinol” deste canto divino. Como leitora, é este rouxinol que me parece cantar o poema – “ó meus castelos de vento/(...) castelos sem fundamento/ quanto que me prometestes/ quanto que me falecestes!”.

Rita Faria


Rita Faria é professora na Universidade Católica Portuguesa, não sabe fazer mais nada sem ser ler e escrever e não quer fazer mais nada sem ser ler e escrever. Fora isto, gosta de filmes de terror, vampiros, fantasmas e zombies em geral. E considera que o português é a língua mais engraçada do mundo.