Salomé
Nuno Amado
Salomé
I
Grácil, curvada sobre os feixes
De junco verde a que se apoia,
Salomé deita de comer aos peixes,
Que na piscina são relâmpagos de jóia.
Frechas de diamante, em fúrias luminosas,
Todos correm febris, ao cair das migalhas:
São rútilas batalhas
De pedras preciosas…
Como resplende a filha de Herodias,
Do seu jardim entre as vermelhas flores!
Corre por toda ela um suor de pedrarias,
Um murmurar de cores…
Sua faustosa túnica esplendente
É uma tarde de triunfo: em fundo cor de brasas,
Combatem fulvamente
Irradiantes tropéis d’áureos dragões com asas.
E sobre as jóias, sobre as lhamas, sobre o oiro,
Tão vivo bate o sol que a princesa franzina,
Ao debruçar-se mais, julga ver um tesoiro
A fulgurar, a arder no fundo da piscina…
Sai do jardim a infanta: o calor a sufoca,
Não pode mais sofrer do sol as ígneas setas…
Com um ramo de jasmins sacode as borboletas
Que lhe poisam na boca…
Ei-la subindo a escadaria na luz dúbia
Que um velário tamisa; ei-la parando
Junto das jaulas, onde estão sonhando,
Como reis presos, os leões da Núbia…
Erguem-se irados os leões, ouvindo passos,
Mas, vendo Salomé, aplacam seu furor
E, em movimentos lassos,
Dão rugidos d’amor!
Fauces escancaradas,
Da túnica os dragões parecem defendê-la…
No entanto, Salomé, divinamente bela,
Pelas grades estende as mãos prateadas,
Que os leões cheiram, em lânguidos delírios,
Julgando que são lírios…
A infanta vai subindo…
Esbelta e esguia,
N’um gesto musical que espalha mil perfumes,
Do favorito leão a juba acaricia…
E os outros leões rugem d’amor e de ciúmes…
Voam íbis no céu… e, erguendo-se, brilhantes,
Dos lagos onde nadam flor’s do Nilo,
Os repuxos cantantes
Aclamam Salomé que entra no peristilo…
II
Finda a lição de dança,
Solto o negro cabelo, onde cantam cequins,
E quási nua, Salomé descansa,
Quebrada de torpor, entre fofos coxins…
Junto da infanta, Flávia, a dançarina,
Que de Roma chegou para lhe dar lições,
Diz-lhe, agitando, à luz da lua adamantina,
Seus crótalos de buxo, onde ardem cabochões:
«Ninguém te vence, flor, nas danças voluptuosas!
«Ora altiva, ora lânguida, ora inquieta,
«Traçando no ar gestos macios como rosas,
«És navio, serpente e borboleta!
«Cheios de garbo e aroma,
«Teus movimentos são lascivos como vagas;
«Ninguém te vence, flor, quando, dançando, embriagas:
«Nem mesmo Júlia, imperatriz de Roma!
«Teu nome há-de brilhar mais de que o sol no azul!
«Em breve, ó Salomé, que os corações cativas,
«Ouvindo a tua fama, os reis do norte e sul
«Virão beijar-te os pés em longas comitivas!»
Cala-se Flávia…
Ao longe, na alameda,
Cantam pavões, à luz da lua merencória…
E Salomé, cerrando as pálpebras de seda,
Adormece a pensar na sua glória…
A infanta sonha...
N’um perfumador,
Arde a mirra, e em seu fumo de safiras,
Passa o espectro da filha de Cíniras,
Que assim fala n’um ritmo embalador:
«Como d’Atenas as mais nobres filhas,
«Áurea cigarra em meus cabelos trouxe;
«Em mar de leite prateadas ilhas,
«Tais os meus seios de um arfar mui doce…
«Quais as ninfas de Diana nos nocturnos
«Bosques, assim meus dedos rescendentes
«Em meus cabelos; e eram meus coturnos
«Sonoros como as cítaras dolentes.
«Vivia com meu pai n’umas coutadas,
«Onde a murta brotava e o rosmaninho;
«Ao comermos, à sombra das latadas,
«Caíam flor’s nas taças d’áureo vinho.
«Quando núbil me vi, vi que era escrava
«Do Amor, que andava em brincos com meus seios:
«Quis beijos!... mas os moços que avistava
«Não venciam meu pai… achava-os feios…
«E então amei meu pai, e de tal jeito
«Que certa noite — nunca eu tal fizera! –
«Fui meter-me lasciva no seu leito,
«Sem que ele imaginasse quem eu era!
«Mau Fado para o incesto me impelia!
«Meu pai, dando-me beijos, desflorou-me,
«E arbusto me encontrei ao outro dia,
«Mirra chamado, pois lhe dei meu nome…»
Cala-se a voz chorosa e cristalina…
Suavemente, p’la janela aberta,
Entram aromas… e a lua pálida, ambarina,
Bate em cheio na infanta que desperta…
Mas eis que no aposento
Entram, a soluçar, doridas, as escravas,
E uma d’elas exclama n’um lamento:
«Acaba de morrer o leão que mais amavas!»
Salomé, assombrada,
Cerra as convulsas mãos, rasga os ricos vestidos,
Solta um ai, que reluz como desnuda espada,
E, açoitada p’la dor, cai no chão, sem sentidos…
III
Na jaula do leão que morreu, João Baptista,
A rugir como um leão, passa as noites e os dias…
Sua voz augural, inflamada, contrista
E aperta sem cessar a alma de Herodias.
Moreno como o bronze, os cabelos crescidos.
Olhos doidos, febris, cheios de maldições,
Seus sonoros rugidos
Fazem tremer de susto os outros leões!
Todos receiam de passar diante d’ele,
E se alguém passa, é a fugir, em doido anseio;
Só Salomé, a princesinha imbele,
Se aproxima da jaula, sem receio…
E João, que, para os outros é feroz,
É para ela um dócil cordeirinho;
Mal a vê, amacia a rude voz,
Muda o olhar de ferro em doce olhar d’arminho…
Salomé ama João
Ainda mais do que amava o leão que lhe morreu,
Passa horas sem fim, cheia de comoção,
A ouvi-lo discorrer sobre Jesus e o Céu…
Logo pela manhã, leva-lhe de comer,
Iguarias sensuais, dignas de grandes reis,
Dá-lhe flor’s a cheirar e vinhos a beber,
— E até lhe deu um dos seus fúlgidos anéis…
E o austero Precursor, o filho de Isabel,
Que andava nu ao sol, mastigando raízes,
Ama perdidamente o delicado anel
Cuja pedra lhe doira as noites infelizes…
IV
No dia dos seus anos,
Herodes, p’ra aquietar seu triste coração,
Convidou os vizinhos soberanos
E deu-lhes um festim de humilhar Salomão.
A preciosa baixela esplende ao sol flamante,
Entre um aluvião de nardos e camélias;
Dos escravos o andar segue o ritmo ondulante
Das hebraicas nubélias…
Canta, ao meio da sala, um repuxo aromático,
Ardem gemas sem conto ao longo das estolas,
E do arábico incenso o nevoeiro lunático
Sobe entre a exalação das lânguidas violas…
Entra um enorme peixe, um peixe surpreendente,
Que nas escamas tem todas as cor’s do céu;
E o velho Herodes conta a história comovente
Do anel que um certo rei lançou ao mar Egeu.
Os olhos fulgem sob as c’roas de verbenas,
Passam guisados mil, nadando em molhos flavos,
E em belos pratos d’oiro os céleres escravos
Trazem nobres pavões de consteladas penas.
Três grandes javalis e dois veados inteiros
Produzem mudo assombro; o calor asfixia…
Em taças musicais fervem vinhos traiçoeiros,
E das nubélias sobe a clara melodia…
Cada matrona exibe os seios sem mistério,
A ancólia do repuxo inflama-se, argentina,
E Lisânias, tetrarca de Abilina,
Recita versos gregos de Tibério…
Herodias sorri com seu sorrir jucundo,
Da luxúria palpita a abrasada maré;
De súbito, porém, tudo se cala:
ao fundo,
Aparece, dançando, a linda Salomé.
Um zaïmph lunar, leve como um perfume,
Cinge-a, deixando ver sua nudez morena,
Cega dos seus anéis o precioso lume,
E em cada mão traz uma pálida açucena.
E a infanta avança então, ao som dos burcelins…
Como sonâmbula perdida
Em encantados, místicos jardins,
Dir-se-ia que dança adormecida…
Dir-se-ia que dança, desmaiando
Ao perfume das flor's que estão em roda…
Dir-se-ia que dança e está sonhando…
Dir-se-ia que a estão beijando toda…
……………………………………...
Pé ante pé, receosa, dir-se-ia
Que entre dois precipícios vai passando,
E que uma oculta mão, teimosa e fria,
Fazê-la resvalar anda tentando…
…………………………………
Nascem bocas no ar que a estão beijando,
E ela foge-lhes, doida, ansiosa, incerta,
Desmaiando, arquejando, suplicando…
Calam-se os burcelins e Salomé desperta.
Rompem aplausos mil em frémitos de chama,
Dão-lhe jóias de preço as lânguidas mulheres,
Herodias floresce, e o velho Herodes clama:
«Salomé! Salomé! dar-te-ei o que quiseres!»
O que há-de ela pedir? de essências um boião?
Um vestido? um anel? um véu? uma torquesa?
— Herodias então diz baixinho à princesa:
«Pede-lhe, minha filha, a cabeça de João!»
A princesa estremece:
«O que dizes, matá-lo?
«Fazê-lo mergulhar no enregelado sono?
«Oh! não… tomara eu, minha mãe, libertá-lo,
«Vesti-lo como um rei, sentá-lo sobre um trono!»
Mas Herodias diz:
«Pede a sua cabeça,
«Se uma glória quer’s ter como ainda ninguém teve;
«Embora a sua morte agora te entristeça,
«Essa frágil tristeza há-de passar em breve…
«O calor dos festins dissipará teus prantos,
«— A saudade é um fugaz aroma de violetas! —
«E o mundo saberá, filha, que os teus encantos
«Fazem rolar no chão cabeças de profetas!
«Essa morte dará um par d’asas radiantes
«Ao teu nome; andarás em pompas de vitória!
«Se quer’s que a tua glória exceda as mais brilhantes
«Rega com sangue quente as raízes da glória!»
Cantam, de Salomé no perfil de moeda,
Doirado p’la ambição, os olhos d’ametista,
E junto do tetrarca a sua voz segreda:
«Dá-me a cabeça de João Baptista!»
Treme o tetrarca, ouvindo tal:
«Pref’rira dar-te
«Toda a baixela, todo o meu tesoiro…»
Mas breve, a um gesto seu, um escravo negro parte,
Uma espada levando e um grande prato d’oiro…
Eugénio de Castro, “Salomé”, Salomé e Outros Poemas. Coimbra: Livraria Moderna de Augusto d’Oliveira - Editor, 1896.
Este poema não devia ter sido esquecido, porque serve de argumento contra uma concepção diacrónica de decadência moral.
Salomé, princesa da Galileia e personagem bíblica, tem no século XIX uma linhagem ilustre de admiradores, que inclui Gustave Flaubert (“Herodíade”, 1877) e Oscar Wilde (Salomé, 1893). Dessa linhagem faz parte o poeta simbolista, natural de Coimbra, Eugénio de Castro (1869-1944). Na famosa écfrase dos quadros do pintor Gustave Moreau, Joris-Karl Huysmans (Ao Arrepio, 1884) descreve Salomé como uma “deidade simbólica da Luxúria indestrutível, a deusa da Histeria imortal, a Beleza maldita, […] a Besta monstruosa, indiferente, irresponsável, insensível, envenenando, como Helena da antiguidade, tudo o que se aproxima, tudo o que a vê, tudo o que toca.”
Neste poema, Eugénio de Castro, tal como Moreau, introduz novidades no parco material bíblico, pois João Baptista sucumbe ao amor e torna-se escravo do desejo que sente por Salomé. O Precursor, literalmente enjaulado, que “para os outros é feroz,/ É para ela um dócil cordeirinho”. Dominado pela beleza da sobrinha e enteada do Tetrarca, João Baptista muda “o olhar de ferro em doce olhar d’arminho”. Segundo Eugénio de Castro, também Salomé ama o profeta, mas esse amor é imediatamente qualificado como estando acima do afecto dedicado a um animal de estimação (nada menos do que um leão), introduzindo retrospectivamente a mácula da degradação e do rebaixamento. Quando Herodias induz a filha a pedir a cabeça de João, a princesa estremece e afirma “O que dizes, matá-lo?/ Fazê-lo mergulhar no enregelado sono?/ Oh! não… tomara eu, minha mãe, libertá-lo,/ Vesti-lo como um rei, sentá-lo sobre um trono!” Infelizmente, e como se verá abruptamente, sem transição, Salomé é fútil, a sua atenção fugaz e os seus interesses, incluindo os eróticos, passageiros. Num momento quer coroá-lo rei (e presumivelmente sentar-se a seu lado), no instante seguinte condena-o à morte. Ora, se esta ligeireza amorosa, se este comportamento leviano era característico de uma adolescente na corte de Herodes Antipas (ou na rua da Sofia por volta de 1900), torna-se problemático vituperar, como exemplo acabado de decadência moral, a conduta de algumas pessoas que vemos, hoje em dia, na televisão.
Herodias incita a filha a pedir a cabeça de João como garantia de uma glória imortal: “E o mundo saberá, filha, que os teus encantos/ Fazem rolar no chão cabeças de profetas!” Aqui, encontramos outra particularidade do poema de Eugénio de Castro, pois quer nas Escrituras, quer na peça de Oscar Wilde, a cabeça do Profeta não sai da travessa ou das mãos de Salomé. Também Flávia, a bailarina romana, havia já prometido fama eterna, embora associada ao talento e à arte da dança. Como agora bem sabemos, Salomé prefere a via do crime. A escolha de Salomé é particularmente odiosa porque passou “horas sem fim, cheia de comoção” a ouvir João Baptista discorrer sobre Jesus e o Céu, isto é, Salomé renuncia à palavra da salvação. No exacto momento em que pede a cabeça de João Baptista ao Tetrarca, os olhos de ametista de Salomé brilham, de acordo com o poema, num perfil de moeda. No império romano, de que a Galileia era então um protectorado, era habitual que a efígie do imperador fosse cunhada nas moedas em curso. No episódio relatado no Evangelho de São Mateus, quando perguntam a Jesus se é lícito pagar tributo a Roma, Jesus pede que lhe mostrem uma moeda. Ao ver a efígie de César no denário, Jesus afirma «Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus» (Mateus 22:21). Assim, no poema de Eugénio de Castro, a moeda não só é uma sinédoque do poder a que Salomé aspira, mas corresponde igualmente a uma escolha radicalmente excludente: uma espécie de cara ou coroa entre o Amor e a Perdição.
António J. Ramalho
António J. Ramalho é arquivista e desconfia de afirmações genéricas, porém enfáticas, do tipo “gosto muito de poesia”.