Musgo
joana meirim
Musgo
Dir-se-á mais tarde;
por trémulos sinais de luz
no ocaso quase obscuro;
se os templos contemplando
estes currais sem gado
ruíram de pobreza.
Dir-se-á depois
por púlpitos postos em silêncio;
peso também a decompor-se
no mesmo pouco som;
se desaba o desenho
da nave antes de fermentar
a cor da sua pedra,
como fermentam leite e lã
de ovelhas mais salinas.
Dir-se-á por fim
que nenhum tempo se demora
na rosácea intacta;
e talvez
que só o musgo dá;
em seu discurso esquivo
de água e indiferença;
alguma ideia disto.
Carlos de Oliveira, “Musgo”, Pastoral, Trabalho Poético, vol. 2. Lisboa: Sá da Costa, 1976.
Sei poucos poemas de cor do princípio ao fim. Em contrapartida, guardo de memória muitos versos, fragmentos de textos, estrofes que de algum modo se misturaram comigo. Seguindo à letra a expressão savoir par cœur poderia dizer que os sei com o coração. É o caso de “Musgo”, o último poema do último livro de poesia de Carlos de Oliveira, do qual apenas fixei a última estrofe: “Dir-se-á por fim/ que nenhum tempo se demora/ na rosácea intacta;/ e talvez/ que só o musgo dá;/ em seu discurso esquivo/ de água e indiferença;/ alguma ideia disto”. Não exagero nada se disser que estes versos me acompanham há muito tempo e me visitam mentalmente muitas vezes. Gosto particularmente de “Musgo”, e creio ter decorado a estrofe final porque a palavra isto sempre me fascinou. Pessoa, Carlos de Oliveira, Manuel António Pina deram-lhe amplitudes muito particulares, mas o próprio uso comum de isto já me parece extraordinário. Que a palavra que serve para designar o que está perto de mim possa ser simultaneamente tão vazia e tão incomensuravelmente cheia de todo o possível diz muito da nossa condição de existência (e a que será que se destina? – perguntava justamente Caetano Veloso). É possível que ao ler o poema pela primeira vez me tenha impressionado o refluxo de um discurso que, sem deixar de aspirar a uma grande amplitude de sentido, reconhece ser tão pouco e tão passageiro o que do mundo pode (podemos) entender.
Do que está aqui, pouco mais poderei dizer do que apontá-lo, confessam estes versos: eis o mundo, água e indiferença. E tempo – sempre fugaz, em Carlos de Oliveira. Tudo é esquivo em “Musgo”, e o poema permite-nos surpreender nisto mesmo uma conformidade entre os versos, o que eles descrevem e nós mesmos. Pelo que entendemos melhor que Carlos de Oliveira preferisse ver os seus versos escritos à máquina com fitas gastas, de modo a que os caracteres perdessem nitidez e o texto se apagasse um pouco. É essa performatividade da escrita, essa conformidade, que dá a isto a força que a palavra tem no fim poema, onde detém uma amplitude surpreendente. Sem precisar de ajuizar, nem descrever, nem conferir nenhum destino a coisa nenhuma. Entendo a pouca ambição (mas será assim tão pouca?) de apenas designar, admiro a determinação e a clareza com que é expressa. De resto (ironia dos deuses?), Carlos de Oliveira não publicaria mais nenhum livro de poemas em vida, de modo que isto acaba por ser a palavra última a que chega a sua poesia. Uma palavra que por certo também designa o que ali ficara escrito. Afinal, “em seu discurso esquivo/ de água e indiferença”, o musgo também daria ideia duma escrita parca, lacunar, orientada para um mero acto de mostração e para a indeterminação. E – last but not the least – isto torna-se a própria conformidade entre tudo isto.
Rosa Maria Martelo
Rosa Maria Martelo é professora da Universidade do Porto, leitora e escritora. Gosta tanto de palavras quanto de imagens, e mais ainda dos diálogos entre umas e outras.