O poesia, poesia, poesia
Nuno Amado
O poesia, poesia, poesia
Sorgi, sorgi, sorgi
Su dalla febbre elettrica del selciato notturno.
Sfrenati dalle elastiche silhouttes equivoche
Guizza nello scatto e nell' urlo improvviso
Sopra l'anonima fucileria monotona
Delle voci instancabili come i flutti
Stride la troia perversa al quadrivio
Poiché l'elegantone le rubò il cagnolino
Saltella una cocotte cavalletta
Da un marciapiede a un altro tutta verde
E scortica le mie midolla il raschio ferrigno del tram
Silenzio - un gesto fulmineo
Ha generato una pioggia di stelle
Da un fianco che piega e rovina sotto il colpo prestigioso
In un mantello di sangue vellutato occhieggiante
Silenzio ancora. Commenta secco
E sordo un revolver che annuncia
E chiude un altro destino
Dino Campana, Canti Orfici e altre Poesie. Milão: Garzanti Libri, 2007.
Ó poesia, poesia, poesia
Ergue-te, ergue-te, ergue-te
Da febre elétrica do piso noturno.
Solta-te das elásticas e equívocas silhuetas
Serpenteia no ímpeto e no grito inesperado
Na anónima e monótona troada
De vozes incansáveis como flautas
Na encruzilhada, a puta perversa berra
Porque o cavalheiro lhe roubou o cão
Saltita um gafanhoto devasso
Todo verde de um passeio ao outro
O chiar ferroso do elétrico raspa o meu miolo
Silêncio – um gesto fulminante
Desencadeou uma chuva de estrelas
De um lado que se verga e arrasa com o assombroso golpe
Num admirável manto de aveludado sangue
De novo silêncio. Comenta seco
E surdo um revólver que anuncia
E encerra um outro destino.
Tradução de Rui Alberto Costa
Este poema não devia ter sido esquecido porque me parece ser a chave para compreender um poeta tantas vezes descrito como incompreensível.
Em 1914, Dino Campana, um poeta vagabundo, que apenas um ano antes tinha perdido os manuscritos de toda a sua poesia, o que o levou a rescrever tudo de memória, publica o seu primeiro e único livro, Canti Orfici, o qual viria a ser vendido pelo próprio pelas estradas de Florença e Bolonha. Reza a lenda que rasgava páginas dos seus livros, de acordo com a pessoa a quem os vendia, ou seja, de acordo com a capacidade intelectual de tal pessoa para compreender ou não os seus poemas. A verdade é que, passados mais de 100 anos, muitas páginas ainda hoje seriam certamente arrancadas dos leitores de Campana. Louco, genial, excêntrico, a sua poesia continua a ser um dos mais eloquentes testemunhos da excelência poética italiana das vanguardas e, sem dúvida, uma das mais incompreendidas. Para justificar tal afirmação, que só por si arrisca a tornar-se um inevitável lugar-comum, poderia escolher um qualquer poema do poeta toscano, mas optei por “O poesia poesia poesia”, editado já nos anos 70, muito depois da sua morte.
Podemos, portanto, arriscar defini-lo como a sua ars poetica, até porque engloba e resume em si, sendo um dos seus poemas mais breves, algumas das mais significativas características de Campana. A evocação do espaço noturno, que é fundamental para a aspiração de Campana a uma poesia que revele a verdade, que seja total e absoluta, ou, como o próprio define, “parola rivelatrice”. A noite é o espaço onde as personagens quotidianas melhor se exprimem, bem ao gosto de um decadentismo europeu ao qual o poeta toscano nada deve. As prostitutas são uma figura central, mulheres que simbolizam o pecato mundano, a própria corrupção social que se mantém, não obstante as figuras de inovação, geralmente reveladas através da eletricidade, dos novos meios de transporte, num piscar de olhos ao futurismo, corrente que estava neste período a explodir (literalmente…) na Itália, mas com a qual Campana nunca se quis relacionar, pois, na sua insanidade mental, teve lucidez para se distanciar dos ideais extremamente políticos operados pelos futuristas. A sua rica adjetivação é outro elemento fundamental, e que tem como missão criar aquela que é a sua grande arma: a imagem quase cinematográfica. A imagem constantemente repetida, na qual assistimos a uma cisão entre a realidade da prostituta que grita e o sonho do gafanhoto devasso, das vozes e do chiar, uma eterna dualidade entre o que é real e irreal, entre o olhar do homem e o do poeta que tem a possibilidade de criar e não apenas de ver. Esta montagem das imagens, esta cinematografia sentimental, é talvez, de todas as características enumeradas, a mais original de Campana.
Campana é um poeta profundamente europeu, na escola de Leopardi, de Rimbaud, e que não raras vezes comparamos com Ângelo de Lima, sobretudo pela permanência em instituições de saúde mental, mas também pela técnica lexical, de uma notável inovação, acompanhada por neologismos e imagens impossíveis senão pela sequência das palavras. Redescobrir Campana e devolver-lhe o papel central que tem nessa literatura não é apenas prestar homenagem a um dos maiores poetas italianos de sempre, mas também, e sobretudo, entender melhor uma época e inclusivamente a literatura.
Rui Alberto Costa
Rui Alberto Costa ensina Língua Portuguesa na Universidade de Bari desde 2009. Doutorando em Estudos Portugueses na Universidade Aberta, onde está a tentar escrever uma tese sobre Almada Negreiros. Uma vez ficou de castigo na escola primária por ter escrito um poema sobre patos. Nunca mais o fez.