Sísifo
Nuno Amado
Sísifo
Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.
Miguel Torga [1977], Diário: Vols. XIII a XVI. Lisboa: D. Quixote, [s.d.], p. 20.
Este poema não devia ter sido esquecido, porque ajuda quem o leia a perceber que não há nada de errado em começar de novo, pelo contrário, e também porque sugere que a loucura talvez seja a forma mais sã de sermos humanos.
Através da interpelação de uma segunda pessoa que tanto pode ser o próprio poeta, que consigo fala, como o leitor, que assim é implicado por aquele, este breve poema retoma o mito de Sísifo para construir uma espécie de hino à vida tal como ela se afigura à maioria de nós: uma demanda pejada de vicissitudes.
Todavia, este é um hino bastante melancólico, até porque, associado ao mito mais óbvio, surge outro, o de Tântalo, cujo castigo consiste na perpétua tentativa frustrada de alcançar os frutos que saciariam a sua fome. Assim se justifica que o poeta se/nos aconselhe a ir “colhendo / Ilusões sucessivas no pomar”: trata-se de frutos que, se não são proibidos, pelo menos são apetecíveis. Porém, não são totalmente satisfatórios: por mais que desfrutemos deles, “nenhum fruto” se exime da sua falsidade. Daí que o poeta/leitor/ser humano “nunca [fique] saciado”.
Dir-se-ia que o que sucede neste poema é semelhante ao que se passa no conto “Cegarrega”, também de Miguel Torga: retomam-se as narrativas clássicas para lançar sobre elas uma luz renovada, que tende a pôr em causa interpretações levianas ou pré-fabricadas a que nos tenhamos, porventura, habituado. O conto de Os Bichos recupera a fábula de Esopo, elogiando a louvável perseverança da cigarra, com a qual o poeta se identifica, e pondo em evidência a mesquinha insensibilidade da formiga, que não sabe (ou não quer) apreciar o triunfo que representa esse ruído estridente, que “até azamboa a gente”. O poema “Sísifo”, por seu turno, retoma o mito do rei de Éfira, condenado a empurrar um rochedo até ao topo de uma colina, no Inferno, durante toda a eternidade, já que este rolaria pela encosta abaixo sempre que estivesse prestes a chegar ao cume.
Recomeçar, nesta lenda grega (tal como no suplício de Tântalo), é, pois, uma terrível condenação. No poema, contudo, surge como uma espécie de conselho sábio oferecido por alguém que, desde logo, recomenda que a tarefa seja encarada com tranquilidade e vagar (“Se puderes, / Sem angústia e sem pressa”). E podemos concluir que existe a intenção de suavizar o carácter árduo e possivelmente frustrante de um percurso continuamente repetido, por meio de uma atitude mais optimista, que valoriza os aspectos positivos do esforço empreendido: o “homem” a quem o poeta se dirige é incentivado a assumir-se como senhor do seu destino e a usufruir das sucessivas oportunidades que a vida lhe oferece, na busca de realização.
Assim, o verbo recomeçar vê-se aqui aliviado da carga pesada, negativa, que os dois mitos gregos lhe conferem, para se converter numa poderosa forma de exercer a vontade própria, através da qual é possível alcançar a valorização pessoal e moral, por meio da autonomia (“os passos que deres […] Dá-os em liberdade”), da perseverança (“Enquanto não alcances / Não descanses”), da exigência (“De nenhum fruto queiras só metade”), da sabedoria (“Vendo / Acordado, / O logro da aventura”) e da hombridade (“És homem, não te esqueças!”).
Esta “aventura” não deixa de ser uma armadilha de enganos permanentes: o “pomar” está cheio de frutos que, mesmo depois de alcançados e degustados na totalidade, deixarão na boca humana um sabor a falsidade. As “Ilusões sucessivas” são para “colher”, sim. Porém, é crucial que as saibamos identificar como tal. Digamos que esse é o primeiro patamar da lucidez.
Condicionados que somos por toda a espécie de limitações, fraudes e quimeras, podemos, ainda assim, orgulhar-nos do “caminho” que escolhemos, contanto que saibamos ter a sensatez necessária para nos aceitarmos (ou reconhecermos) como somos, por mais insano que o nosso percurso de vida se afigure: “Vendo / Acordado, o logro da aventura”. Cada um de nós pode sentir-se infeliz, mas poderá sempre encontrar dentro de si a satisfação de se saber livre e saudavelmente louco. É esse o segundo patamar.
“És homem, não te esqueças!” – isto é: humanidade não é apenas consciência, é também livre arbítrio. É através da lucidez que se adquire o direito de ser dono da sua própria loucura: «Só é tua a loucura / Onde, com lucidez, te reconheças». E neste aparente paradoxo reside o expoente máximo da liberdade humana, e mesmo da humanidade, o traço distintivo da nossa espécie. Afinal, graças ao dom da consciência, só nós temos a capacidade para reconhecermos que somos insanos. De resto, sem loucura, o homem não seria mais do que um ser puramente racional. Ou, nas palavras de D. Sebastião, escritas pela pena de Fernando Pessoa: «besta sadia, / Cadáver adiado que procria».
Sara de Almeida Leite
Sara de Almeida Leite é docente do ISEC Lisboa e fez toda a sua formação superior na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde começou a leccionar Literatura Portuguesa em 1995. É autora de vários livros sobre o bom uso da língua portuguesa, bem como de artigos científicos sobre boas práticas no ensino da língua e da literatura. Também escreve ficção juvenil (colecção “O Mundo da Inês”, da Porto Editora) e trabalha ocasionalmente como tradutora e ilustradora.