Late Fragment
joana meirim
Late Fragment
And did you get what
you wanted from this life, even so?
I did.
And what did you want?
To call myself beloved, to feel myself
beloved on the earth.
Raymond Carver, “Late Fragment”, A New Path to the Waterfall (1989). All of Us — The Collected Poems. Londres: The Harvill Press, 2003.
Este é talvez o poema mais citado de Raymond Carver, pelas razões erradas: é tido como uma boa descrição do significado do amor na vida humana, mas Carver não está a falar do tipo de amor que se presume.
É um poema póstumo em vida. O título imita as designações dadas aos inéditos encontrados depois da morte de um autor. Por mais trocista de si mesmo que Carver pareça, ele sabe que o poema é um fragmento porque existe uma obra, e que a obra só existe porque as pessoas certas a reconhecem.
O diálogo encenado aproxima-se do formato pergunta-resposta de uma entrevista, sendo fácil imaginar os versos do poema como excertos de uma derradeira entrevista a Carver — outra justificação para o título. A primeira pergunta tem duas inflexões que a tornam provocatória. Primeiro, o demonstrativo “this” diminui qualitativamente o tipo de vida para que aponta: “Conseguiste o que querias deste tipo de vida?” – Carver avalia-se pejorativamente por ter escolhido ser escritor. Depois, no final da interrogação, a expressão “even so” acentua este tom: “Conseguiste o que querias deste tipo de vida, apesar de tudo?” O “tudo” é a soma dos eventos da sua vida, e a pergunta resume-se a: “Valeu a pena?” A resposta é categórica: sim.
Este é o último poema de A New Path to the Waterfall, publicado em 1989, um ano depois da morte de Carver. O livro foi preparado em contra-relógio, com a notícia de um segundo diagnóstico de cancro nos pulmões. Foi apenas nesta fase final que Carver incluiu epígrafes em alguns poemas, a grande maioria de Tchékhov. Há a intenção clara de se apropriar de um estatuto: Carver atingiu o patamar desejado do reconhecimento literário e considera-se merecedor dessa posição. Agora, já pode firmar-se abertamente numa linhagem, sem enganos: mesmo tendo passado os últimos anos a escrever poemas, Carver sabe que é no conto que se distingue, género em que Tchékhov é o mestre.
A resposta à segunda pergunta é a confissão do desejo mais profundo de Carver: “ser amado na terra”. Tudo valeu a pena porque isso foi conseguido, mas os agentes responsáveis não são as mulheres ou os filhos que teve, os pais ou os amigos — eles não chegariam para povoar a terra que é requisito essencial desse desejo. Esta é uma terra habitada pelas pessoas que o reconheceram como escritor e por aquelas a quem deixará um legado — são essas que o fazem sentir-se amado. Nunca lhe teria bastado uma mulher a sussurrar-lhe ao ouvido que ele seria o próximo Tchékhov.
Helena Carneiro
Helena Carneiro fez o mestrado no Programa em Teoria da Literatura (FLUL). É redactora e assistente editorial na Imprensa da Universidade de Lisboa. Tem tido quem lhe explique poesia e gosta muito de Philip Larkin, que na sua lápide preferiu ser denominado “escritor”.