Montalvão tem o formato
joana meirim
I
Montalvão tem o formato
De um avião de carreira
No castelo vai o piloto
Quase a chegar à fronteira
II
Com as asas bem formadas
Das Almas ao S. João
A Corredoura é a cauda
O Outeiro o coração
III
Bernardino e Santo André
São as bóias de apoiar
Porque este avião é
Dos que apoisa no mar
IV
Este conjunto de ruas
Faz esta transformação
Ruas Direitas e do Cabo
O cimo do avião
V
Quem conhecer Montalvão
Verá que isto é verdade
A forma de um avião
Mesmo quando está parado
António José Belo, http://www.jfmontalvao.pt/index.php/espaco-visitante/arte-e-cultura-popular/poetas-populares/2-uncategorised/88-antonio-jose-belo-poetas-populares
Local 2.
Montalvão, no distrito de Portalegre, é imaginada no poema de António José Belo como um aparelho aéreo, resultado da semelhança entre o desenho topográfico do povoado e um avião. Mas nesta nota o poema é um pretexto para a ficção de quem deixa para trás a metrópole e depara com a possibilidade de outra vida.
“É aqui”, ficou quase uma hora (59 minutos e 54 segundos, para ser exacto) a dizer, sucessivas vezes em intervalos de meio minuto, tomado pela sensação de que tinha encontrado o que procurava. Antes, embora não se tivesse chegado aos números de Istambul (se é que era Istambul), passara pelo sufoco de viver em Lisboa, cuja área metropolitana já tinha em 2017 2,57 milhões de pessoas, a população móvel era 80% da população residente, cada pessoa fazia mais de 2,5 deslocações por dia, o automóvel era o meio de deslocação mais utilizado, contavam-se 110 deslocações em média para a entrada na capital por cada 100 residentes. Um suplício. Mas aqui não. Uma promessa de libertação aérea nel blu dipinto di blu.
Ao chegar sentira logo que esta era a escala certa, a medida justa da dieta: prescindir do que não se mostrava verdadeiramente necessário, abandonar a ideia de que quanto mais melhor, desistir de só saber crescer. E aqui, vejam bem, existe tudo. Jane Helier não tem razão ao dizer a Miss Marple que nada acontece em St. Mary Mead, pois as pessoas são todas muito parecidas onde quer que se encontrem e é sempre possível encontrar semelhanças entre as coisas neste mundo (por exemplo, entre “Montalvão tem o formato” e “O dos castelos”, de Pessoa). Mesmo Portalegre, que não é, bem entendido, St. Mary Mead, levou Régio (lembrado há tempos aqui nos Jogos) a invocar idêntico argumento, ao explicar, contra quem queria ir para uma metrópole a sério, que a experiência na capital de província do Alto Alentejo era tão diversa como em Paris. Até existia um sapateiro que sodomizava os filhos.
Para o argumento de Régio, este sapateiro era prova suficiente de que está tudo aqui e não são necessárias canseiras em deslocações para destinos mais cosmopolitas. Para um argumento contrário ao dele, a defesa de Portalegre podia fazer-se de modo mais convincente se se pudesse provar que nem tudo existe aqui (por exemplo, seria melhor não existir um sapateiro que sodomiza os filhos). Há, no entanto, razões diferentes a favor de Portalegre em detrimento de outras terras. É que o sapateiro de que fala Régio é um sapateiro, enquanto noutros sítios temos o sapateiro, o farmacêutico, a advogada, o bombeiro, a médica, o polícia, a merceeira. O mundo não terá atingido um tal estado de corrupção que nos obrigue a ir, pela busca de outra terra, para uma arca com reserva de admissão a um e um só de cada espécie. Por isso, não é aqui.
João Dionísio
João Dionísio dá aulas de Literatura Portuguesa e de Crítica Textual na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.