Do gosto dos namorados
Maria S. Mendes
Do gosto dos namorados
Soneto Glosado
Quão doce é a um firme namorado
Um fingido fugir da doce dama,
Um dizer que não quer ir para a cama
Um não sejais, senhor, tão malcriado!
Um ai que nos ouviram! Que é pecado!
Um ai que minha Mãe ouviu e chama!
Um ai de mim, que perco honra e fama!
Um não sejais, senhor, tão porfiado!
Quão doce é um suar a curvar coxas!
Um dar lugar a tudo, de cansada;
Um lembrai-vos, senhor, qual me deixais!
Um encobrir, chorosa, as nódoas roxas;
Um despedir-se, em lágrimas banhada;
Contemple-o quem chegar a tempos tais!
Glosa
I
Se licença do Amor me fora dada
E que pudesse usar de meus cuidados
E neles contemplar um quase nada
Quanto dá a sentir a seus privados,
Considerara em uma vista em vão torvada
Em uns suspiros e ais meio quebrados,
Considerara enfim como este estado
Quão doce é a um firme namorado.
II
Considerara um ver andar de Amores
Um pobre Amante atrás da Dama bela;
Um contínuo chorar de desfavores,
Uma esquivança da gentil donzela;
Um trocar destes males em favores,
Um dar entrada, com gentil cautela,
Um ver andar o Amante em viva flama,
Um fingido fugir da doce Dama.
III
Não foge por fugir, que se fugira,
Tão depressa alcançar se não deixara,
Em tanto passe, logo se retira,
Que não é do que quer que longe avara
Finge com ânimo brando uma alta ira;
E tudo por mostrar vender-se cara;
Sobre tudo inda mais um triste inflama
Um dizer que não quer ir para a cama.
IV
Um chorar, e dizer sou mui medrosa!
Deixai-me! Ora, senhor, quem tal cuidara!
Ai, mofina de mim! Ai desditosa!
Quem antes que vos vira se acabara!
Um sentar-se a um canto, mui queixosa,
Um dizer ai que noite aqui passara!
Um morder na mão do namorado,
Um não sejais, senhor, tão malcriado!
V
Um chegar para a cama recatada,
Fazendo mil meneios de escapar-se,
Um pedir que a luz seja apagada,
Um dizer que aos pés quer acostar-se,
Um tirar o mantéu quase enojada,
Um vagaroso e tardo descalçar-se,
Um culpar de apetite tão ousado,
Um ai que nos ouviram! Que é pecado!
VI
Um ferrar e dizer senhor, deixai-me!
Deixai-me, não me atrevo, i-vos embora!
Não posso fazer tal, antes matai-me!
Outro dia vireis, não posso agora!
Fazei-me este favor, e contentai-me,
Outra coisa farei por vós outra hora!
(e um dar com ela logo sobre a cama)
Um ai que minha Mãe nos ouve, e chama!
VII
Um dizer senhor, mal me tratais!
Um suspirar contínuo e afligido,
Um retirai-vos lá, que me matais,
Deixai-me erguer, senhor, que sois sentido!
Um valha-me o Senhor! Que rijo estais!
Já tenho o corpo como sal moído,
Um ai de mim, que soa muito a cama!
Um ai de mim, que perco honra e fama!
VIII
Um esperai lá, que sinto atravessar-me
De um agudo alfinete o esquerdo braço;
Um não queirais, senhor, afadigar-me,
Não sejais ao que peço humilde e escasso!
Um tende-vos em vós! Quereis matar-me?
Um não tereis vergonha em ser ousado!
Um não sejais, senhor, tão porfiado!
IX
Um deixai-me afloxar, por via vossa
A cinta, que me vou, triste, afogando;
Um ai de mim, não sei que fazer possa!
Um deixai-me, senhor, vou desmaiando;
Um não tereis piedade desta moça?
Mais quisera morrer, que estar penando!
Considerem memórias pouco floxas
Quão doce é um suar a curvar coxas.
X
Considere quem não pode achar-se nisso
Que achar-se pode e mais qualquer só vê-lo
E mais lhe vale tornar tal reboliço
Com que Amor premeia seu desvelo,
Achar a moça feita em um ouriço,
E na cama estender seu corpo belo;
Um pôr a mão no rosto envergonhada
Um dar lugar a tudo, de cansada.
XI
Aqui minha licença é acabada,
Não posso mais dizer e fico mudo
Nesta consideração tão estremada,
Que diga um pouco, senão que diga tudo,
Bem sei que em o dizer, não digo nada,
Que podem obras mais, que empenho rudo
Mas cuido que dirá, feito o demais
Um lembrai-vos, senhor, qual me deixais.
XII
Considerara pois esta penosa
Fingindo envergonhar-se do passado,
Um suspirar mudo de queixosa,
Um dar da cama um salto apressado
Um achar-se molhada e vergonhosa,
Um ter simulação e grão cuidado,
E um desembrulhar na cama as trouxas,
Um encobrir, chorosa, as nódoas roxas.
XIII
Um chegar-se coberta para o Amante
Fazendo-lhe um queixume acelerado,
Chamando-lhe de mau, sujo e bargante,
Traidor, desleal, desvergonhado,
Um áspero abraçar, mas mui galante
Um manso abrir a porta sossegado,
Um pedir-lhe que seja visitada,
Um despedir-se, em lágrimas banhada.
XIV
Um tornar para a cama, contemplando
Miudamente os passos que há passado;
Um mau dormir, em tudo considerando
Se tem tudo o que fez, bem empregado,
Um arrependimento em si formando,
Um mais ardente querer o namorado;
E ao último fim destes sinais,
Contemple-o quem chegar a tempos tais.
D. Tomás de Noronha, “Do Gosto dos Namorados”, Antologia de Poesia Erótica e Satírica. Lisboa:
Antígona / Frenesi; 2008.
Este poema não devia ter sido esquecido porque é uma representação poética virtuosa daquela sedução que consiste em dar aos olhos aquilo que se nega a “cobiçosas mãos”. Os conhecedores d’ Os Lusíadas já terão percebido que aludo ao jogo de sedução existente entre as Ninfas e os marinheiros na Ilha dos Amores. De qualquer uma das Ninfas se pode dizer o que Noronha diz sobre a donzela do seu poema, no que toca à tentativa de escapar ao desejo do namorado: “Não foge por fugir, que se fugira, / tão depressa alcançar se não deixara.” O poema parece assentar numa relação pouco harmoniosa entre os gestos impetuosos do namorado e as recusas fingidas da namorada, uma vez que estas últimas têm mais expressão no poema do que os momentos em que ambos se unem fisicamente. Aparentemente, até ao momento em que a namorada, fingindo “com ânimo brando uma alta ira”, morde a mão do amante, não há provas de qualquer contacto de natureza física. Mas só aparentemente! Uma leitura atenta revela que o poema é, desde o início, uma descrição perfeita daquele som que se ouvia na Ilha dos Amores, um “mimoso choro”, e que, por isso, é mais harmonioso do que parece.
É fácil constatar que o poema está recheado de aliterações refinadas, como a do segundo verso do soneto (“um fingindo fugir da doce dama” que, na verdade, é antecedida pelo “firme” do primeiro verso e se prolonga com o “dizem” do verso seguinte), e que Noronha deu uma atenção especial à sonoridade desta sua composição. Onde esta atenção se torna particularmente evidente é na anáfora com a palavra “um”, que, aliás, não se encontra sonoramente muito distante do “quão” que abre o poema. Sendo assim, a repetição da palavra “um” tem um propósito maior do que fazer uma enumeração sequencial dos gestos existentes neste encontro amoroso. A repetição do som [ũ] visa representar os gemidos dos amantes ao longo do poema, envolvendo, assim, o leitor numa trama onomatopaica que torna mais interessante a sequência dos gestos relatados. Não se pense, contudo, que este som é o único que visa representar o “mimoso choro” dos amantes, pois essa é também a função da interjeição “ai!” tantas vezes gritada. Esta interjeição parece somente dar expressão ao medo que a namorada tem das investidas do namorado ou ao receio de ser ouvida e julgada por terceiros: “Um ai que nos ouviram! Que é pecado!”. Porém, tendo em conta a arte de sedução desta namorada, ou seja, a lógica do poema, é possível interpretar “que nos ouviram! Que é pecado!” não como a verbalização sincera dos receios da donzela, mas como uma tentativa de disfarçar o gemido genuíno que soltara. Através do seu som, o poema torna-se harmonioso, pois revela as carícias trocadas entre as recusas bradadas. Na poesia não são só os olhos que também comem.
Jorge Almeida
Jorge Almeida é licenciado em Estudos Portugueses e doutorando no Programa em Teoria da Literatura (FLUL). Escreve crítica literária no Observador. Sabe de cor um poema de Cesário Verde e versos avulso de outros poetas, mesmo não se tendo esforçado para que isso acontecesse.