Joana Meirim
Nuno Amado
Ler um poema, qualquer tipo de poema – soneto, haikai ou poema concreto – é lê-lo pelo menos duas vezes. Isto não acontece com todo o tipo de enunciados verbais, o que não significa que ler um poema seja atividade mais relevante que ler uma notícia desportiva. São apenas atividades diferentes. À partida, ler uma notícia desportiva implicará apenas uma leitura, isto se o texto estiver coeso e coerente; ao passo que ler um poema exige mais do que uma leitura, porque o texto poucas vezes é coeso e raramente prima pela coerência. Ler um poema implica, por isso, atenção redobrada.
Ora, falar da atenção que um poema desperta leva, no meu caso, a prestar atenção a um poema de que gosto particularmente. Lembrei-me de trazer para este texto aquela que é uma das artes poéticas mais bem conseguidas da língua portuguesa, que começa com o verso “Catar feijão se limita com escrever”. Neste poema de João Cabral de Melo Neto, o poeta aproxima o ato de “catar feijão” à composição de um poema. Assim como os grãos de feijão se atiram para a água do alguidar, também as palavras se jogam “na folha de papel”. Depois há palavras/feijões que boiam e palavras/feijões que vão ao fundo; há que saber deitar fora “o leve e oco, palha e eco” e saber ficar com o essencial. Se a primeira estrofe deste poema, que aqui tentei parafrasear, me diz muito sobre o processo criativo, a segunda diz-me mais sobre o exercício de leitura de um poema.
“Catar feijão” é a imagem escolhida para a criação poética – imagem perfeita, porque clara e não enfática – e, como toda a melhor poesia que não se esquece de Aristóteles (mesmo que não se lembre dele), consegue atingir o invulgar sem perder a clareza. É sobretudo na segunda e última parte desta arte poética que encontro uma possível descrição da experiência de leitura de um poema. Vale a pena, por isso, transcrevê-la.
2.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.
Ler várias vezes este poema de João Cabral de Melo Neto, e depois em particular esta segunda estrofe, obriga-me a dar atenção a vários aspetos. Assim, parece-me claro, por exemplo, que o risco de selecionar os feijões seja precisamente deixar passar grãos pesados, de “quebrar dente”. Mais invulgares são os versos da segunda metade desta estrofe. O “grão imastigável”, a pedra, que é risco na seleção do feijão, é requisito essencial para a poesia e também para a leitura do poema: “a pedra dá à frase seu grão mais vivo” e obriga, por esta razão, a ler mais vezes e a estar mais atento durante a leitura e releitura.
Aquela pedra no meio do caminho obstrui a leitura do poema e açula a nossa atenção. Assim, um dos grãos mais vivos desta segunda parte do poema é o penúltimo verso, pois não estamos à espera de encontrar ao lado do nome “leitura” os adjetivos “fluviante, flutual”. E menos esperamos ainda que se invertam os sufixos de “fluvial” e “flutuante”.
Talvez o maior benefício da leitura de poesia seja este: ao produzir obstruções à leitura de si próprio, o poema “açula a atenção” do leitor, não deixando que se desvie do essencial.
Joana Meirim
Joana Meirim é professora na Universidade Católica Portuguesa. Entre os 18 e os 19 anos escreveu vários poemas e publicou-os, hélas. Hoje não voltaria a fazê-lo. Gosta de poesia com humor, qualidade que aliás considera inerente a toda a boa poesia.