João Dionísio
Nuno Amado
Interpretar um poema é um exercício de memória e de circulação.
Interpretar um poema é um exercício de memória. Há uma composição dialogada entre os trovadores Vasco Martins de Resende e Afonso Sanches que se conserva num manuscrito seiscentista por sua vez integrado numa miscelânea da Biblioteca Pública Municipal do Porto. O título destas trovas, assim aparece designada a composição, indica que elas foram encontradas entre os papéis do grande Mestre André de Resende e que estavam postas em solfa. Um dos autores, Afonso Sanches, é filho de D. Dinis; o outro, Vasco Martins de Resende, é tetravô de André de Resende, o humanista que faleceu em 1573. De acordo com a indicação no título, o manuscrito, que hoje está perdido, a partir do qual terá sido copiado o testemunho do Porto apresentava notação musical. Quem encomendou ou quem fez a cópia seiscentista não estava interessado na música ou porque não estava familiarizado com certos aspectos da notação medieva ou mais simplesmente por não ter literacia musical. E é nisto que estamos agora, resignados ao conhecimento etimológico de palavras como soneto e afins. A interpretação como exercício de memória reactiva é devolver-lhes o som, indo atrás de uma tradição feita de práticas que incluem a ruminação monástica ou o apelo de Adriana Calcanhoto para comermos Caetano. Limpa-se q.b. a garganta, começa-se a ler e vai-se por aí fora a testar as pausas, a descobrir as sequências e os acentos, a detectar os encontros e os recontros verbais.
Interpretar um poema é um exercício de circulação. Uma vez testadas as pausas, descobertas as sequências e os acentos, detectados os encontros e os recontros, vai-se tendo consciência mais presente dos andamentos: dos sítios por onde se passa velozmente e de quais são os lugares de trânsito vagaroso; vai-se percebendo talvez qual é a unidade que conta, a palavra, a frase, ou sequências mais vastas, a medida de comprimento em vigor nesta terra. Se tudo correr bem descortina-se uma espécie de rede viária que mostra como se circula entre este ponto e aquele da composição e se tudo correr muito bem entre a própria composição e outras e se tudo correr maravilhosamente bem entre ela e o que alguns dizem pertencer a outras terras (meia de leite e um croissant com chocolate, 10 burpees em 4 séries de 30 segundos cada, as Caldas da Rainha, 9h da manhã e já 28 graus, aquele par de calças skinny). Depois, a rede viária renovadamente percebida leva-nos a reavaliar a circulação interna na composição, as estradas entre ela e outras e a comunicação no plano mais vasto entre ela e o que se passou entretanto (noite mal dormida, o quadro de girassóis de 2011, já não caibo numa casa em que o espaço é todo meu, dois litros de água, o Rafa afinal a jogar o que sabe).
Depois da capo, bis, etc.
João Dionísio
João Dionísio dá aulas de Literatura Portuguesa e de Crítica Textual na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.