Maria Rita Furtado
Nuno Amado
A Primeira Mulher do Santo Disse
Acordei vendo que o teu rosto não olhava para mim,
mas para o pássaro que poisava no teu pulso,
atraído por comida. A sua confiança, por uma vez, foi recompensada.
Ofereceste ao pássaro tudo o que tinhas.
Eu lembro-me. Foi assim que começou
connosco: Estendeste a mão; eu aceitei-a.
G. E. Patterson
(tradução de Maria Rita Furtado)
Durante muitos anos, dei explicações de Português. Em geral, os alunos que precisam de explicações de Português detestam ler e julgam que ler (principalmente poemas) não serve para nada. Costumo responder-lhes que têm razão: não serve e não tento convencê-los do contrário. Isto costuma surpreendê-los. Estão habituados a que lhes digam que a literatura é uma arte elevadíssima, mais a mais se falarmos de poesia, e, quando o texto não ocupa a página inteira, assumem que isso deve querer dizer que é complicadíssimo. A primeira coisa que costumava fazer era explicar-lhes que ler fosse o que fosse era como resolver um enigma e mostrava-lhes um artigo de um jornal que fosse ao encontro dos seus interesses (A Bola, por exemplo). A seguir faziam um exercício em que deveriam parafrasear o que lessem e, depois, faziam o mesmo com um poema. O objectivo era tentar fazê-los perceber que uma coisa não era, em si, muito diferente da outra.
Quando lemos um artigo de jornal, ou qualquer outra coisa, temos, antes de mais, de prestar atenção para não sermos enganados. Ora, quando ajudava uma amiga a procurar um texto que fosse lido no seu casamento, deparei com “The Saint’s First Wife Said”, do poeta americano G. E. Patterson. O poema figurava em várias listas de poemas de amor, e eu quase fui enganada porque, tal como muitos dos alunos que tive, não prestei atenção e comecei por não ler o título. Quando lemos o poema sem o título (ou se lermos mal o título, esquecendo o adjectivo, o que acontece muito a alunos apressados), parece, de facto, que é um poema bom para ser lido num casamento. Tal como aconteceu à narradora, o pássaro que pousa na mão do Santo foi recompensado com tudo o que o Santo tinha para lhe dar; e o que é o amor senão oferecermos ao outro tudo o que temos, sem reservas? No entanto, não devemos deixar de ler bem o título e, quando o fazemos, descobrimos que a narradora do poema não é a mulher do Santo, mas a primeira mulher do Santo. O Santo teve mais do que uma mulher (não sabemos quantas) e, embora o sucesso de uma relação amorosa não devesse ser medido pela sua duração, quando alguém casa, não casa, à partida, pensando que o seu casamento terá prazo de validade.
Passemos à primeira estrofe do poema. Se o Santo oferece tudo o que tem ao pássaro para quem está a olhar (e não falarei do amor que um Santo deverá ter para com Deus), o que é que isso nos diz acerca do amor que sente (sentia?) pela mulher? Este é o tipo de pergunta que devemos fazer a um poema ou a qualquer outro texto. Se não percebemos bem uma coisa, perguntamos e, neste caso, a resposta é: “diz-nos que ele já não ama a mulher porque, olhando para o pássaro e tendo-o na mão, tudo o que o Santo tem é, agora, do pássaro”. Finalmente, a primeira mulher do Santo está, no fundo, a dizer-nos que o pássaro, tal como ela, mal sabe ao que vai, pois o mesmo que está a acontecer com o pássaro, aconteceu com ela: o Santo estendeu-lhes a mão e ambos a aceitaram. O que temos aqui é um truque. O poema que, para os mais incautos, parecia de amor é, afinal, a descrição de uma armadilha. Apanhar pássaros não é diferente de apanhar pessoas e aquilo que pássaros e pessoas julgavam ser seu para sempre pode ter um fim, o que implica, neste poema, uma traição da confiança. E, assim sendo, pouco importa se a descrição do destinatário do poema enquanto “Santo” é irónica ou não, pois, em qualquer caso, o poema não deveria figurar em listas de poemas bons para serem lidos em casamentos.
Em suma, este poema ensina-nos que, para sermos bons leitores de poemas devemos, tal como no amor, ter cuidado com armadilhas. Porém, restará sempre uma pergunta: aprender a prestar atenção a armadilhas garante o sucesso infalível de uma interpretação? A resposta é, claro, “não”, mas é o melhor que podemos fazer.
Maria Rita Furtado
Maria Rita Furtado é tradutora. Decorou um poema sobre colibris, que estava num livro sobre animais que a sua irmã rasgou. A história é verdadeira e está registada em vídeo. Por causa do desgosto, nunca mais decorou poemas. Mas gosta de ler alguns e de conversar sobre eles.