Miguel Tamen
Nuno Amado
Interpretação, num sentido diluído
A palavra ‘análise’ intima química: substâncias e princípios activos. Desde que se começaram a analisar poemas nunca porém se descobriu nada. Foi um acaso feliz. Mesmo que se tivessem conseguido isolar substâncias não se saberia em que posição da tabela periódica as colocar. Deveria a camonite ser posta à esquerda da homerite? Haverá diferença de peso atómico entre a celanite e a junqueirite? No que diz respeito a poemas é preferível abandonar a palavra ‘análise.’ Não se consegue imaginar química onde não há física. Precisamos de outra palavra.
A palavra ‘interpretação’ é a melhor alternativa. Não creio todavia que a devamos usar pura. ‘Interpretação’ evoca sempre coisas mentais; mas no seu estado não-diluído propõe-se também como consolação para a falta de coisas não-mentais. O erro da palavra ‘análise’ é o de sugerir substâncias onde não há nada; o do sentido puro da palavra ‘interpretação’ é o de sugerir que a interpretação é uma alternativa à análise.
A interpretação de um poema nunca leva a sério a ideia de substâncias ou princípios activos; não sabe bem o que fazer com instrumentos ou métodos. Não é por isso uma alternativa para aquilo que não há. Sem microscópios ou substâncias não existe maneira de ir arranjá-los mais moles, de plasticina ou chocolate, num armazém de epistemologia. A alternativa para onde não é preciso química não é uma química imaginária. A interpretação de um poema não é a análise imaginária de um poema. Não há coisas mentais imaginárias.
Quando falamos de interpretação de um poema, e até quando achamos que há uma diferença entre falar de interpretação e falar de análise, pode porém ressurgir um substituto da ambição que nos ficara dos tempos das crenças pataquímicas. Trata-se da ideia de que interpretamos um poema para encontrar coisas que existem nesse poema. Essas coisas não serão talvez substâncias; mas podem em todo o caso ser encontradas por nós. Chamamos-lhes em conversa ‘o significado do poema.’
O significado do poema é quase sempre tratado como um tesouro mental. Acredita-se que a pessoa que fez o poema terá enterrado entidades mentais nesse poema; e isto para nosso benefício. Cabe-nos a nós descobrir o que lá foi posto. Esta teoria defende que descendemos de uma raça benévola de peritos em palavras cruzadas. A ideia de que a preocupação dos nossos antepassados terá sido a nossa gratificação mental é porém demasiado interesseira para ser levada a sério. A nossa gratificação mental tem mais comummente a ver com aquilo que à revelia fomos apurando sobre esses antepassados.
A noção de que a importância de um poema consiste na sua utilidade é peculiar. As nossas vidas são melhoradas por frigoríficos e tribunais; mas não do mesmo modo pela arte. Só por cortesia a interpretação de um poema pode ser entendida como o benefício que eu posso retirar dele. O facto é que geralmente se explica mal em que consistiria tal benefício; e talvez por isso não se consiga explicar bem em que consiste um poema.
Miguel Tamen
Miguel Tamen é professor no Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa e director da sua Faculdade de Letras. O seu último livro (com António M. Feijó) é A universidade como deve ser (2017).