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Pedra-de-toque

Alberto Pimenta sobre um poema de António Botto

Nuno Amado

Alberto Pimenta sobre um poema de António Botto

 

Andava a Lua nos céus

Com o seu bando de estrelas.

 

Na minha alcova

Ardiam velas

Em candelabros de bronze.

 

Pelo chão em desalinho

Os veludos pareciam

Ondas de sangue e ondas de vinho.

 

Ele olhava-me cismando;

E eu,

Placidamente, fumava,

Vendo a Lua branca e nua

Que pelos céus caminhava.

 

Aproximou-se; e em delírio

Procurou àvidamente

E àvidamente beijou

A minha boca de cravo

Que a beijar se recusou.

 

Arrastou-me para Ele;

E encostado ao meu ombro

Falou-me de um pajem loiro

Que morrera de saudade

À beira-mar, a cantar…

 

Olhei o céu!

 

Agora a Lua fugia

Entre nuvens que tornavam

A linda noite sombria.

 

Deram-se as bocas num beijo,

– Um beijo nervoso e lento…

O homem cede ao desejo

Como a nuvem cede ao vento.

 

Vinha longe a madrugada.

 

Por fim,

Largando esse corpo

Que adormecera cansado

E que eu beijara, loucamente,

Sem sentir, –

Bebia vinho, perdidamente,

Bebia vinho..., até cair.[1]

O poema transcrito de António Boto começa com um acorde harmónico: a lua e as estrelas. Representação mimética não é: a lua que percorre o céu durante a noite, lua cheia, ou quase cheia, ou ainda meia cheia (porque as outras são luas mais diurnas que nocturnas), ofusca as estrelas à sua volta. Portanto esta união da lua com as estrelas é uma união harmónica, e não denotativa. Não é uma inovação nem seria de esperar que o fosse, porque o negócio dos harmónicos é o ‘fingimento’ mais antigo que os poetas conhecem.

De facto, no Canto VII da Ilíada lê-se: “Tal como no céu cintilam claras as estrelas / em volta da lua resplandecente”[2]. “Cintilam claras” é um exagero, mas o excesso predicativo vai mais longe ainda em Bocage: “No etéreo prado a Lua apascentava / Das estrelas o nítido rebanho”[3].

No texto de Boto, a lua vai ser representada mais duas vezes, aproximadamente a um terço e a dois terços do texto: 4.ª e 8.ª estrofe. Dois terços, o lugar da quinta nota, do harmónico mais puro, o sol do dó (o solidó). Estas duas ocorrências, depois da introdutória, dividem o poema em 3 partes. A primeira, determinada pela mera tonalidade harmónica do motivo (lua com estrelas), a segunda marcada já por uma tonalidade denotativa, ainda que redundante (lua branca) e ainda por um segundo harmónico fonético (lua/nua) e, finalmente, uma terceira parte introduzida por uma tónica referencial dada em predicação complexa (a lua que foge entre nuvens que escurecem a noite, porque a tapam e tapam o luar). O harmónico inicial, pura irrealidade, materializa-se e concretiza-se com o decorrer do tempo e a introdução do homem em cena: é esta a ordem de representação.

Macroesteticamente, o poema apresenta-se como ‘canção’. Em termos de determinação histórica, deverá ser uma canção epigonal, no entanto a designação não deveria ser completamente aleatória. A estrutura da ‘canção’ como género poético foi praticamente fixada por Dante em De vulgari eloquentia: em média, 5 a 10 estrofes com remate, cada estrofe com 9 a 20 versos, e os versos de 7 a 11 sílabas (mas Camões p. ex. permitiu-se usar versos de 6 a 10 sílabas). As canções de Dante, que ele mesmo analisa e comenta na Vita Nuova, organizam-se em volta de certas propriedades numerológicas do 7, que estão também na origem do soneto. Mas assim como o soneto reparte visivelmente o 7 nos seus harmónios pitagóricos 3 e 4, assim a canção introduz de qualquer modo o 3 e, implicitamente, o 4. A primeira canção de Dante (Donne ch’avete intelletto d’amore) tem 70 versos que, como ele explica, se organizam em 3 grupos, respectivamente de 14, 42 e 14 versos. Como os verso têm 7 ou 11 sílabas, as relações numéricas constitutivas desta ordem são 3, 4, 3 + 4 = 7, 7 + 4 = 11, e os múltiplos. Será que António Boto usava e designava ‘canção’ com consciência da ordem que lhe cabe na origem? Vamos ver.

Os elementos mínimos constitutivos da ordem são: o número de estrofes, o número de versos de cada estrofe, o número de sílabas métricas de cada verso, o encadeamento rimático, eventualmente outras cadências.

 
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O número de estrofes, 11, se entrarmos em conta com o remate, situa-se dentro da medida ortodoxa (entre 5 e 10 estrofes, com remate) O número 11 é constitutivo da ordem da canção, mas não vamos atribuir importância a este facto, porque outras canções deste poema apresentam outro número de estrofes com outro tipo de relação e de desenvolvimento.

O número total de versos é 39, número divisível por 3, o que sublinha emblematicamente a tripartição a que foi feita referência.

Até à 6.ª estrofe, portanto até aproximadamente ao meio do poema em termos estróficos, observa-se um ritmo em crescendo, em que o número de versos da estrofe é acompanhado no seu crescimento pelo crescimento do número de estrofes: uma estrofe de dois versos, duas de três, três de cinco. Neste ponto dá-se uma queda abrupta do ritmo crescendo, por meio de um verso solto.

Assim, parece que se cruzam dois planos: um rítmico, que divide o poema estroficamente ao meio, outro melódico, que divide o poema em três partes, de acordo com a repetição do motivo inicial, como já vimos. Este cruzamento de facto existe, só que os dois terços melódicos coincidem com o meio rítmico. Sendo assim, aquilo que se apurou, em termos de ordem aparente, ser o primeiro conjunto rítmico, ou seja, as 6 primeiras estrofes (2, 3/3, 5/5/5), deverá por sua vez permitir uma cesura que coincida em termos rítmicos com o primeiro terço melódico, que são as três primeiras estrofes.

Com efeito, essas estrofes usam uma lei de progressão interna por desdobramento, o que não acontece nas 3 seguintes. É interessante a lei de progressão utilizada: temos a igualdade inicial e ideal (7/7); um dos harmónicos do 7, o 4, desdobra-se, dando origem ao 4/4/7; o desdobramento seguinte é dado pela reduplicação do 7 com duplicação integrada do 4: 7/7/8. Dois que estão em repouso (7/7) entram em movimento e quebram a harmonia inicial, irreal. O que salta à vista é a utilização do 7 e do 4 com bases constitutivas, de tal modo que a primeira rima (que é transestrófica) resulta da união do 7 com o 4, o que dá 11, e a última rima do poema resulta da união do 3 com o 8, o que dá igualmente 11. É a serpente de rabo na boca.

Mas voltemos ao texto. O segundo grupo melódico, e rítmico, parece introduzir uma paragem, e assim seria se não fossem duas quebras importantes. A primeira é rítmica e temática, é o segundo verso da 4.ª estrofe, que coincide com a introdução do «eu» no discurso; a segunda, a falta de rima na última estrofe do grupo, na 6.ª estrofe do poema, é melódica, prepara em termos modulatórios o corte que vem a seguir.

Convém desde já notar que há um contraste de tipo contrapontístico entre a ordem e a representação nestes dois primeiros grupos: no primeiro grupo a representação é estática e a ordem obedece a uma lei de progressão; no segundo grupo, o que se representa é dinâmico, e a ordem cristalizou em estrofes de versificação análoga.

Quanto ao terceiro grupo, há que notar que os dois versos soltos se enquadram e referem ritmicamente um ao outro, dão um ao outro razão lógica, tanto mais que se servem de versos com um número de sílabas que se insere na ortodoxia da ordem, e na sua lógica essencial: 4 e 7. Enquadram as duas estrofes de 3 e 4 versos (3 + 4 = 7), dando-lhes uma unidade dentro da quebra, unidade sublinhada também pela igualdade de versos de ambas as estrofes, enquanto a estrofe final, que é formalmente uma unidade, pela diversidade e irregularidade da versificação aponta para uma ruptura insanável.

Claro que as harmonias fonéticas e sintácticas entre a ordem e a representação são várias e notáveis e por vezes subtis, como p. ex. o facto de o motivo do vinho surgir na 3.ª estrofe num verso de 8 sílabas e ser retomado no fim, a fechar, outra vez nos versos de 8 sílabas: as reticências impedem que se faça a sinalefa no último verso do poema, considerando 7 em vez de 8 sílabas.

Mas o mais importante é reconhecer que a harmonia entre ordem e representação é, como disse, de tipo contrapontístico (linhas diferentes sobrepostas), ou, em termos retóricos, podíamos dizer que é de tipo quiástico. Se de início o cruzamento entre estrelas e velas, e entre sangue e vinho, não é ainda concludente, a terceira estrofe, com a troca dos modos, já o é:

 
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 Mas tudo o que vem depois, a partir do momento em que a lua branca e nua preside, é um grande quiasmo de representação:

 
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Que é que está aqui a ser representado? O amor, ou uma forma dele, se quiserem. O que neste mundo harmoniza as duplicidades é a chamada síntese. Ora entre o primeiro movimento (ele aproximou-se e eu recusei) e o segundo movimento (eu beijei, ele adormeceu), está o encontro (deram-se as bocas num beijo). No amor, o encontro, ou a síntese, não vem no fim, vem no meio, entre o desejo e o cansaço. Primeiro água na terra, depois água no lago. É isso que torna trágico o amor, e é a ciência dessa complexidade que esta ordem estética representa, mas não psicologicamente, nem como narrativa episódica duma anedota biográfica. Isso não. Isso é uma forma vergonhosa de lidar com textos estéticos.

 

Alberto Pimenta, A magia que tira os pecados do mundo. Lisboa: Cotovia, 1995. Aqui publicado com a autorização do autor. 

[1] in A. Boto (cit. n. 137), 14-15.

[2] Hélade (antologia org. por M. H. da Rocha Pereira), Coimbra 1982 (Fac. Letras da Universidade), 27.

[3] Obras de Bocage, Porto 1968 (Lello & Irmão), 278.