Contact Us

Use the form on the right to contact us.

You can edit the text in this area, and change where the contact form on the right submits to, by entering edit mode using the modes on the bottom right. 

         

123 Street Avenue, City Town, 99999

(123) 555-6789

email@address.com

 

You can set your address, phone number, email and site description in the settings tab.
Link to read me page with more information.

Narciso

Poemas de antes

Narciso

Maria S. Mendes

 

Narciso

 

Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,

Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...

Ah, que terrível face e que arcabouço

Este meu corpo lânguido escondia!

 

Ó boca tumular, cerrada e fria,

Cujo silêncio esfíngico bem ouço!

Ó lindos olhos sôfregos, de moço,

Numa fronte a suar melancolia!

 

Assim me desejei nestas imagens.

Meus poemas requintados e selvagens,

O meu Desejo os sulca de vermelho:

 

Que eu vivo à espera dessa noite estranha,

Noite de amor em que me goze e tenha,

.... Lá no fundo do poço em que me espelho!

 

José Régio, “Narciso”, Biografia. Lisboa: Portugália, 1969.

 

Este poema não devia ser esquecido porque foi escrito por José Régio, cuja obra poética, carregada de inquietude e de uma certa ironia trágica, aponta para o âmago de todos nós. 

A identidade pessoal é uma construção incessante, por vezes confusa e destabilizadora do indivíduo, confrontado com Eus sucessivamente mudados e frequentemente opostos – e Régio sabe-o e exprime-o melhor do que ninguém. 

No poema, José Régio serve-se do mito de Narciso para retratar a impossibilidade de possuir o seu alter ego– neste caso, não uma imagem física mas o outro eu a que aspira ser. Sabemos, desde o início, que o espelho em que se olha não é o espelho de Narciso, um lago, mas antes o da interioridade do poeta, metaforizada na expressão “o meu próprio poço”. Todo o desenvolvimento do soneto é condicionado por esta ideia de introspecção. A expressão “dobrado em dois” alerta-nos para o desdobramento do eu que tem lugar quando o poeta contempla o reflexo da sua alma, descrita à semelhança de um corpo (“terrível face e arcabouço”) que, no entanto, contrasta brutalmente com o corpo do poeta, adjectivado de “lânguido”. Este ser aparentemente fraco e debilitado guarda em si – ou melhor, esconde, como diz Régio – uma interioridade que o faz tremer.

A discrepância entre o corpo e a alma do sujeito é explicitada na segunda quadra. Enquanto a descrição que nos é feita da imagem de Narciso apenas indica a sua beleza resplandecente, a adjectivação abundante desta estrofe remete-nos para o campo do sofrimento. Na verdade, o sujeito descreve-se como um poète maudit, um poeta pleno de génio desprezado, dono de uma beleza – “lindos olhos sôfregos, de moço” – que se alia a uma personalidade angustiada, “a suar melancolia”. 

Na estrofe seguinte, esta imagem de poeta romântico é enfatizada pela força dos poemas, “requintados e selvagens”, que escreverá. Contudo, esta mesma estrofe desfaz a representação de Régio como poète maudit ao remetê-la para o campo da imaginação: “Assim me desejei nestas imagens”, confessa o poeta. Assim, descobrimos que a descrição feita na segunda quadra não é o verdadeiro reflexo da interioridade de Régio, mas antes o reflexo que ele desejava encontrar – por outras palavras, a pessoa que ele desejava ser. 

A ideia de desejo inflama o primeiro terceto, quer através das palavras “desejei” e “Desejo” quer através da referência, no último verso, ao vermelho, cor carnal da posse. Contudo, o vermelho é também a cor do desejo insatisfeito, do corpo não possuído, remetendo iniludivelmente para o peito autoflagelado de Narciso, enlouquecido por não se poder possuir a si mesmo. Também Régio vive o drama de não poder possuir a imagem que desejava ter – não uma imagem física, mas a imagem imaginada da sua alma. Se Narciso vive (e morre) no desespero de não se poder separar em dois, o drama em Régio é o de não se poder juntar num só. 

Na última estrofe, diz-nos o poeta que espera a noite em que possa finalmente unir-se à imagem que espelha no fundo do poço. Termina o poema com uma exclamação, sinal de esperança, mas bem irónica, pois bem sabe o poeta que a espera será eterna.  

 Teresa Líbano Monteiro 


Teresa Líbano Monteiro licenciou-se em Artes e Humanidades na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e tirou o Mestrado em Estudos de Cultura na Universidade Católica Portuguesa de Lisboa, com uma dissertação de literatura comparada sobre os contos de Mary Lavin e de Sophia de Mello Breyner Andresen. Não tem uma área de estudo em específico, mas interessa-se por Literatura, História e História da Arte.