Narciso
Maria S. Mendes
Narciso
Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!
Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico bem ouço!
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!
Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:
Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
.... Lá no fundo do poço em que me espelho!
José Régio, “Narciso”, Biografia. Lisboa: Portugália, 1969.
Este poema não devia ser esquecido porque foi escrito por José Régio, cuja obra poética, carregada de inquietude e de uma certa ironia trágica, aponta para o âmago de todos nós.
A identidade pessoal é uma construção incessante, por vezes confusa e destabilizadora do indivíduo, confrontado com Eus sucessivamente mudados e frequentemente opostos – e Régio sabe-o e exprime-o melhor do que ninguém.
No poema, José Régio serve-se do mito de Narciso para retratar a impossibilidade de possuir o seu alter ego– neste caso, não uma imagem física mas o outro eu a que aspira ser. Sabemos, desde o início, que o espelho em que se olha não é o espelho de Narciso, um lago, mas antes o da interioridade do poeta, metaforizada na expressão “o meu próprio poço”. Todo o desenvolvimento do soneto é condicionado por esta ideia de introspecção. A expressão “dobrado em dois” alerta-nos para o desdobramento do eu que tem lugar quando o poeta contempla o reflexo da sua alma, descrita à semelhança de um corpo (“terrível face e arcabouço”) que, no entanto, contrasta brutalmente com o corpo do poeta, adjectivado de “lânguido”. Este ser aparentemente fraco e debilitado guarda em si – ou melhor, esconde, como diz Régio – uma interioridade que o faz tremer.
A discrepância entre o corpo e a alma do sujeito é explicitada na segunda quadra. Enquanto a descrição que nos é feita da imagem de Narciso apenas indica a sua beleza resplandecente, a adjectivação abundante desta estrofe remete-nos para o campo do sofrimento. Na verdade, o sujeito descreve-se como um poète maudit, um poeta pleno de génio desprezado, dono de uma beleza – “lindos olhos sôfregos, de moço” – que se alia a uma personalidade angustiada, “a suar melancolia”.
Na estrofe seguinte, esta imagem de poeta romântico é enfatizada pela força dos poemas, “requintados e selvagens”, que escreverá. Contudo, esta mesma estrofe desfaz a representação de Régio como poète maudit ao remetê-la para o campo da imaginação: “Assim me desejei nestas imagens”, confessa o poeta. Assim, descobrimos que a descrição feita na segunda quadra não é o verdadeiro reflexo da interioridade de Régio, mas antes o reflexo que ele desejava encontrar – por outras palavras, a pessoa que ele desejava ser.
A ideia de desejo inflama o primeiro terceto, quer através das palavras “desejei” e “Desejo” quer através da referência, no último verso, ao vermelho, cor carnal da posse. Contudo, o vermelho é também a cor do desejo insatisfeito, do corpo não possuído, remetendo iniludivelmente para o peito autoflagelado de Narciso, enlouquecido por não se poder possuir a si mesmo. Também Régio vive o drama de não poder possuir a imagem que desejava ter – não uma imagem física, mas a imagem imaginada da sua alma. Se Narciso vive (e morre) no desespero de não se poder separar em dois, o drama em Régio é o de não se poder juntar num só.
Na última estrofe, diz-nos o poeta que espera a noite em que possa finalmente unir-se à imagem que espelha no fundo do poço. Termina o poema com uma exclamação, sinal de esperança, mas bem irónica, pois bem sabe o poeta que a espera será eterna.
Teresa Líbano Monteiro
Teresa Líbano Monteiro licenciou-se em Artes e Humanidades na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e tirou o Mestrado em Estudos de Cultura na Universidade Católica Portuguesa de Lisboa, com uma dissertação de literatura comparada sobre os contos de Mary Lavin e de Sophia de Mello Breyner Andresen. Não tem uma área de estudo em específico, mas interessa-se por Literatura, História e História da Arte.