Nunca foi mal nenhum mor
Maria S. Mendes
Nunca foi mal nenhum mor
Nunca foi mal nenhum mor
nem no há aí nos amores
que a lembrança do favor,
no tempo dos desfavores.
Eu por minha má ventura
não há já mal que não visse,
mas nunca tanta tristura
me lembra que ainda sentisse.
Fui e sou grande amador
e vai-me bem mal de amores
e muitos vi de grão dor,
mas esta é suma das dores.
Bernardim Ribeiro, “Nunca foi mal nenhum mor”,Obras de Bernardim Ribeiro, organização, introdução e notas de Helder Macedo e Maurício Matos. Lisboa: Editorial Presença, 2010.
Este poema não devia ter sido esquecido porque evoca o poder da memória e a presença constante desta na nossa identidade e na nossa vida.
Novamente uma cantiga da autoria de Bernardim Ribeiro, o poeta cerebral das dores de amor e da filosofia existencial. O mote afirma que a maior dor é, nas fases da vida em que passamos por dificuldades, lembrarmo-nos de um passado em que a felicidade esteve a nosso lado. O par antonímico “favor”/”desfavor” é uma belíssima escolha para definir a dor de evocar tempos felizes que já acabaram.
Gosto muito deste poema porque constato ser um antecedente fundamental de muitas outras obras que me ensinaram a importância absoluta da memória do passado na vida presente – Sôbolos rios que vão, de Camões; a voz de Amália a cantar “triste quero viver pois se mudou/em tristeza a alegria do passado”, num poema que alguns dizem ser também da autoria de Camões; o livro de Sophie Call Doleur Exquise, em que, em contagem decrescente e em forma de diário, a artista fala da dor da separação num processo de constante lembrança dos tempos felizes – neste dia, faltavam 92 dias para a dor. 91 dias. 90 dias. E etc. Os tempos felizes são, no fundo, a felicidade pateta da ignorância até algo ou alguém estragar tudo.
Este poema é também uma pérola linguística. Escrito numa época “crítica” do português médio, em que a língua procurava formas estáveis mas ainda exibia oscilação (Cardeira 2012) [1], a cantiga exibe a insuperável palavra “tristura” em vez de tristeza, que outras composições do Cancioneiro escolhem. De facto, a fase de elaboração de uma língua dá muito jeito ao ofício de poeta, especialmente quando se trata de arranjar rima para “má ventura”. Mais alguns anos volvidos, e já Bernardim teria de dar outras voltas à cabeça.
Também o uso de “amador”, aqui usado no seu pleno sentido etimológico, decorrente de “amar” e “amor”, é inesquecível. “Fui e sou grande amador” parece quase um pleonasmo propositado, com muita personalidade.
E enfim, gosto deste poema porque, como mais tarde diria um outro enorme poeta, “o bem passado/ não é gosto mas é mágoa”. Uma grande verdade da vida, quer queiramos, quer não.
Rita Faria
[1]Cardeira, E. (2012). “O Cancioneiro Geral na perspectiva do linguista”. Ribeiro, C. A. & S. R. de Sousa (eds). Cancioneiro Geralde Garcia de Resende: Um Livro à Luz da História. V.N. Famalicão: Edições Húmus, pp. 45 – 49.
Rita Faria é professora na Universidade Católica Portuguesa, não sabe fazer mais nada sem ser ler e escrever e não quer fazer mais nada sem ser ler e escrever. Fora isto, gosta de filmes de terror, vampiros, fantasmas e zombies em geral. E considera que o português é a língua mais engraçada do mundo.