Andamento Holandês
Nuno Amado
Andamento Holandês
A E. DE G.,
NUM ENCONTRO DE HORAS NA HAIA
1.
Desenho a Holanda cor de Delft
E é minha a água simples de uma mão
De quem não digo nem às aves a maneira
Nem nome ou osso:
Só que a conheço pelo azul que posso.
Um dia (ou “era uma vez”, dizia o outro),
Um dia me levaram minhas mágoas,
Como já Bernardim, às longes terras,
Renovado Camões a Guardafui:
E um aceno bastou de porcelana
Já para alguns jacintos alinhados
Na janela fechada do que fui.
Esperam rosa ou estrada os que adormecem,
O sono é sua forma a linho em branco:
Só eu tiro de mim a flor de Holanda
Com a força da graça recebida
E um pouco de bretanha ensanguentada:
Não por tristeza aprendida
Ou maneira de enfermagem,
Mas por que sangre em copa esta Tulipa
Na neve diluída da viagem.
29.1.1963
2.
De Rembrandt a Van Gogh a tinta és tu
Em rosa de bateira e sol de vinho.
O tempo fez-se-me fome,
Mas levantas os braços – e é o moinho.
Como a corça na Haia plo rebento
E a ponte levadiça,
Vais em maneira, amor e movimento,
Vela da tarde, dique do meu sangue:
Afinal só um pouco de mulher
Que a palavra detém e águas cultivam.
Graça do vento em céus inesperados,
Gaivota és para mim que nasci delas;
No milagre de sermos encontrados
Já de Amsterdam são nossas as janelas.
Taça a taça trocámos anéis áureos
De vinho português sobre holandilha:
Quem via – como saber
Se era braço de noivo ou mão de filha?
Mas sempre tinta à tarde! Eras a Lua
Que em foice adestra os calmos céus dos pôlders:
Eu ceifava a manhã nos teus cabelos,
Contava-os um a um, canal abaixo,
E, deitado nos verbos que te evocam,
Feliz como um pintor que vende pouco,
Era holandês por ti...
Que, bem pensando,
O que eu cá sou, céus de Van Gogh, é louco!
29.1.1963
3.
Quem parte Delfts na linha?
(O amor é novo).
Chamam de longe à neve,
Ouve-se mal.
(O amor é tímido).
Batem à porta (é neve), à porta,
De touca branca engomada:
Passava à barca a velha vida morta
E rente reviveu...
Que por um triz de azul a comporta é fechada.
1.2.1963
4.
Nos céus de Flandres dos de Holanda me despeço:
Aqui pudéramos morar,
Mas é tarde nos tectos e eu começo,
Sem lágrimas, a chorar.
Ficam para trás canais e gruas;
As gaivotas, sem cibo, se abateram:
Sob as árvores nuas
Nem os lençóis de neve nos quiseram.
Oh poema antigo, leva-me longe,
Onde as portas das casas na água dão
E é preciso cuidado, além da ponte
Que abre ou fecha conforme o coração.
Oh poema fraco, faz-me forte à hora do adeus!
Eu quero que capriches
Nas sereias e flâmulas coradas
Das últimas peniches.
E quando a Primavera
(É o tom, não é?)
Levantar as tulipas do chão morto,
E os jacintos em flor,
Faz com eles um tapete de pantera
Para o pé,
Para o pé do meu amor!
2.2.1963
5.
O judeu português come lentilhas,
O lapidário engole diamantes,
O moleiro do pôlder anda à roda,
Só eu não sou holandês!
A mulher gorda toucou-se de goma,
O tamanqueiro fez-me um par de socos,
Com eles chorei, sentado num queijo de Gurda,
E nem assim,
E nem assim fui holandês!
Mas bastou que Titi dissesse “alto” ao pelotão das bicicletas
Numa esquina da Haia,
Para eu passar, como passam as setas,
Diques, docas, pontões
(Oh, a isenção dos poetas!)
E o fogo das três cores no seu arco de saia.
Oh Palácio da Paz, minha agulha e alegria!
Já vendo pombas aos turistas,
Mas a ela não, que é boa e amável
Como a chuva e a poesia.
A Holanda é impermeável.
3.2.1963
6.
Comprei um chapéu na Frísia,
Uma garrafa em Utreque...
(Mas esta quadra não tem braços!
O amor voou).
Comprei um frasco em Utreque,
Rum de Jamaica na Frísia...
(Mas esta quadra tem asas,
Que o amor voltou!).
Genebra! Dêem-me genebra!
Quero esquecer, feliz que eu sou!
3.2.1963
7.
Oh cachimbo da ponte,
Passaste alguém no teu fumo?
Vaca da tarde, que a mão dela mugiu,
Diz-me pela tua malha,
Para que lado fugiu?
(Então, por troça, alguém
Pôs o cachimbo na boca à vaca, num cartaz,
Para eu nada saber de mãos ou malhas,
Nem se me quer, ou se águas vende, ou o que é que faz).
3.2. 1963
8.
Sossego de ancas lavradas,
Rebite a chapas imóveis,
Um pouco de tinta em tudo,
A terra é água num bolbo,
Com cor a lama é veludo.
Fuma o horizonte
E a vida é este hálito frio a ferro e queijo,
Esta saudade de pau com passos dentro:
Quem é daqui não a tem,
O estranho a leva num fuso,
E logo sai a teia e o linho
E a dor e o uso.
Com barcos, eis a Terra Baixa de outros,
A cave dos peixes;
Mas, com o que trago dela, transplanto-a
E, para que não me deixes,
Canto-a,
E a minha Holanda é toda entulho, entulho...
Ó pobre coração atamancado,
Fazes tanto barulho!
3.2.1963
9.
Menina Rosa de Holanda,
Azul à porta, aroma na janela,
Dêsne que a vi a minha vida anda
Amarela, amarela...
Menina Rosa de Holanda,
Lá isso, canteiros, não!
Que o espinho é muito cioso,
Não quer multiplicação.
Menina Rosa de Holanda,
Linho de bom linhar,
Se o uso do cachimbo é que faz a boca à banda,
Torto serei, mas só de a muito amar.
Por isso sempre em fumo anda
Do Norte o Mar:
Ou cachimbo ou paquete, eu sou, que à Holanda
Rosas de fogo, menina Rosa, me coube dar.
3.2.1963
10.
A cegonha dos pôlders emigrou,
Seu hálito de pão ameiga os combros:
Com as águas que aí estão, se alguém apela,
Leve de amor, hei-de passá-la aos ombros.
Que cuidadoso bico espreita os lodos
Carregados de azul pela mão vagarosa!
Na pálida incerteza dos matizes
Minha alma não se mexe, de medrosa.
Agora! passageira; que te componho o joelho.
Mas ainda não ao colo de noivado:
Ao ritmo dos pernaltas passa o perigo
E a pétala:
Porque não meu cuidado?
Semeemos de horas brancas o encontro,
Oh noites da Haia,
Que tudo quanto teça o tempo
O disponho aos quadrados na tua saia,
Enquanto a cegonha dos pôlders
Cristalina atravessa o bico dependente,
Ao colher-te, na vela alaranjada
Da barca de Vicente.
6.2.1963
11.
Ande perdido em terra fêmea pajem chorado,
Donzela branca troca o cabelo pelo encontrado.
Também trocamos os patins na neve
Por casual brinquedo e mútuo enlace,
Na esperança mal fundada
De que a barca nos tome e a neve passe.
Mas longo é o campo branco
E a ameaça do ferro nos artelhos:
Dói patinar, se a morte aos Alpes nos condena,
E colher o edelweiss é rasgar os joelhos.
Diga-se achado em terra macha pajem perdido,
Donzela ao longe casto cabelo deixa comprido.
6.2.1963
12.
Avercamp, Avercamp, traze as tintas
E pinta o nosso outeiro, ainda que mintas!
Esboça o ar da noite em fresco linho,
Íntimo a alguma carne truculenta,
E derrama o veludo como um vinho
Na trémula do amor.
Pinta-a, Avercamp, seja como for!
Traze a caixa, Jan Steen, e a tinta ardente,
Pinta o nosso interior inexistente!
Uns vizinhos vieram para a boda
Com cabaços de grés esvaziados:
Nossa Senhora faça da água toda
Da Holanda
Satisfeitos os nossos convidados!
Pinta, Jan Steen, pintas estas coisas, anda!
E não esqueça, na orgia imaginosa
Da casinha do dique já tombada,
A velhota do folho cor-de-rosa,
Avó da pura noiva imaginada.
Nem os grossos burgueses de sombrero,
Com bofes naturais, que não de goma,
E o mundo saiba em tinta que só quero
Ser feliz, tão feliz quanto se coma.
Mas sobretudo, oh Mestre, ao canal rente
Não caia o noivo, tonto de poesia:
O noivo,
Que eu não sei se é menino, se é borracho,
Pombo ou bêbado à força da alegria:
Em todo o caso, bêbado como um cacho!
Desprendido insensato do aparente,
O que na vida perco; em tinta o acho.
6.2.1963
13.
Tão longe a última placa ao Zuider Zee!
A barra às listas desce na minha alma
E fechou-se a passagem para ti.
Agora acendo espelhos na memória,
Rotterdam apagado me recusa:
Minhas saudades são lama
Que em Portugal se não usa.
Oh, vem graça da pátria,
Condão do apartamento,
Tornar-me a mim sem ela
E ao vinho e ao esquecimento,
Enquanto guardadas são
Por Descartes e Spinoza
As portas de Amesterdão,
Entrada de Haia, onde ela é rosa,
À qual, se eu fosse hortolano,
Só chamaria ACQUIESCENTIA...
Mas em latim – de todo o ano –,
Para ser mais espinoziano
«Ce qu’il me faut» de paciência.
4.2.1963
14.
Também aqui – como não! –
Elisabeth atira os seus florins aos pobres,
E já todo o regaço é floração.
Vem tu, virgem da tarde,
Com teu junquilho de ouro ao verde pino:
Quero mostrar aos meus a graça que arde
Em cobres, no teu rosto.
E o nome da Rainha verdadeira,
Que Hungria timbra,
Por ti ensinarei de outra maneira
Às raparigas de Coimbra.
6.2.1963
Vitorino Nemésio, “Andamento Holandês”, Obras Completas, Poesia 1963-1976, Vol. II – Tomo II, edição de Luiz Fagundes Duarte. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009.
“Andamento Holandês” (1963) não deve ser esquecido porque é um poema contínuo, espécie de manifesto poético do temperamento do autor, cujos ecos poderão ser encontrados em “A Caminho do Corvo” (1969), segundo poema de Sapateia Açoriana:
À Maria Gabriela e ao Rodrigo,
primos filiais
A minha vida está velha
Mas eu sou novo até aos dentes.
Bendito seja o deus do encontro,
O mar que nos criou
Na sede da verdade,
A moça que o Canal tocou com seus fantasmas
E se deu de repente a mim como uma mãe,
Pois fica-se sabendo
Que da espuma do mar sai gente e amor também.
Bendita a Milha, o espaço ardente,
E a mão cerrada
Contra a vida esmagada.
Abençoemos o impossível
E que o silêncio bem ouvido
Seja por mim no amor de alguém.
25.7.1969[1]
É, justamente, a partir da relação insuspeita entre estes dois poemas que se descobre, por um lado, como um poeta de nervo domina o apetite, sublevando-o em ritmo poético (“Andamento Holandês”), e, por outro, como uma dentição robusta mostra o nervo desse mesmo poeta (“A Caminho do Corvo”).
Neste sentido, “Andamento Holandês” não poderia ter referente mais concreto: uma paixão tardia do poeta por uma menina e moça holandesa (29.1.1963 a 4.2.1963), uma experiência comum que aponta para a essência da natureza humana – o desejo. Porém, é o modo singular e cerebral desta experiência que permite grifá-lo como um poema de leitura inadiável, caso se preze o vigor da fixação do dente ao nervo e deste ao osso, à raiz.
Convicta de que a acção de desejar diz muito mais sobre o sujeito que a sofre do que sobre o objecto desejado – veja-se a diferença do desejo que afecta, e.g., um ignorante, um filósofo ou um poeta –, importa-me a forma como essa acção se torna maneira de pensar e ponto poderoso de associações. É assim que o verso de abertura, espécie de adágio, prepara o leitor para a evocação não só da pintura de Vermeer, com a referência à sua cidade natal, mas de outros pintores dos Países Baixos (“De Rembrandt a Van Gogh a tinta és tu”; “Avercamp, Avercamp, traze as tintas”; “Traze a caixa, Jan Steen, e a tinta ardente”). Isto permite desenhar, quase de modo ecfrástico, as forças contrárias que subjazem ao carácter lírico-trovadoresco do encontro amoroso que se sabe frustre (“Como já Bernardim, às longes terras,/ Renovado Camões a Guardafui:”), sugerindo, simultaneamente, uma imortalização da amada a partir do canto elegíaco da sua lira e uma estranha transferência que, concedendo ubiquidade à dilecta, a dilui e a torna, mais que holandesa, Holanda por inteiro (“Mas, com o que trago dela, transplantando-a/ E, para que não me deixes,/ Canto-a,/ E a minha Holanda é toda entulho, entulho...”).
A intensidade desiderativa (nestes casos, as estruturas do cérebro tornam-se ricas em dopamina e endorfina, o mesmo neurotransmissor que proporciona prazer quando se sacia a fome), embora potenciada pela causa externa imaginada (“pura noiva imaginada”), é afinada pela aptidão cerebral do poeta, bem como pela ágil movimentação da sua imaginação. O poeta imagina o que conhece e pode, e fá-lo de forma excepcional, revelando um perfil de nervo e uma arcada dentária resistente. Basta para isso sublinhar a força da passagem referente à imagem do “moinho” (“O tempo fez-se-me fome,/ Mas levantas os braços – e é moinho”; “E o mundo saiba em tinta que só quero/ Ser feliz, tão feliz quanto se coma.”): construção que tanto serve para o cultivo das terras, provendo alimento, assim os braços da amada, como para drenar as águas, donde a impermeabilidade da Holanda.
A esta luz, e sendo fundamental o uso dos incisivos na alimentação, parece-me que o apetite aguçado do poeta não prescinde nem do sentido de humor, nem de uma refinada ironia, (“Ó pobre coração atamancado,/ Fazes tanto barulho!”; “Pôs o cachimbo na boca à vaca, num cartaz,”), e muito menos de uma lucidez cortante (“O que na vida perco, em tinta o acho”; “E a vida é este hálito frio a ferro e queijo”; “Dêsne que a vi a minha vida anda/ Amarela, amarela...”). Na verdade, o poeta sabe que “A Holanda é impermeável”: impermeável, não apenas pela existência abundante de moinhos, mas também porque a amada resiste à linfa do seu canto; impermeável, não apenas porque Descartes, que se instala definitivamente na Holanda em 1629, redige o Tratado das Paixões (1649), mas também porque a verve indomesticável do poeta não encontra saciedade no contentamento que serve a Espinosa, o “judeu português” (“Para ser mais espinoziano/ «Ce qu’il me faut» de paciência”). No fundo, o que tão bem cabe a um cuidador do horto é esforço monástico para o seu temperamento.
Por fim, e para se perceber melhor o nervo do poeta, resta acrescentar isto: o poema “Andamento Holandês” não tem 14 andamentos. Encontro em Sapateia Açoriana uma insuspeita e agónica continuação: o segundo poema desta obra, “A Caminho do Corvo”, escrito já no rescaldo do desejo (25.7.1969), possui o mesmo tom de “Andamento Holandês”, embora a atmosfera de ambos seja distinta. Em “A Caminho do Corvo”, a distância impede o apostema ou a inflamação, porque a intensidade do desejo é transformada em protesto vital (“A minha vida está velha/ Mas eu sou novo até aos dentes.”). Aqui, o poeta, de esmalte a brilhar, canta o “impossível” “de mão cerrada/ Contra a vida esmagada”. Usufruindo da “isenção” do seu ofício, o poeta não deixa de aliar a esse protesto o tom lírico e deceptivo, já presente em “Andamento Holandês” e que encontra exponenciação máxima em “A Caminho do Corvo” (“E que o silêncio bem ouvido/ Seja por mim no amor de alguém”). A prescrição parece simples, embora encerre complexas variações na formação de uma lâmina dentária forte: saber escrever um poema activa o movimento da mandíbula e previne um certo tipo de hipodontia, anomalia que pode afectar os incisivos, provocando a sua diminuição ou queda.
Sofia A. Carvalho
[1] Vitorino Nemésio, “A Caminho do Corvo”, Sapateia Açoriana, Obras Completas, Poesia 1963-1976, Vol. II – Tomo II, Luiz Fagundes Duarte (ed.). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009.
Sofia A. Carvalho é doutoranda no Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa. Tem uma paixão pelo teatro que a levou a sair do lugar de espectadora e a frequentar o Curso de Formação de Actores. Escreve, dança: coisas que gosta de fazer, tanto quanto de ler.
(A autora deste texto é financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, com uma Bolsa de Doutoramento com a referência SFRH/BD/120804/201)