Ó montes erguidos
Maria S. Mendes
Abaix’esta serra,
verei minha terra.
Ó montes erguidos,
deixai-vos cair,
deixai-vos somir
e ser destroídos,
pois males sentidos
me dam tanta guerra
por ver minha terra.
Ribeiras do mar,
Que tendes mudanças,
as minhas lembranças
deixai-as passar.
Deixai-mas tornar,
dar novas da terra,
que dá tanta guerra.
Cabo
O sol escurece,
a noite se vem;
meus olhos, meu bem
já nam aparece.
Mais cedo anoitece
aquém desta serra
que na minha terra
Francisco de Sousa, “Ó montes erguidos”, Florilégio do Cancioneiro de Resende, 2ª edição, selecção, prefácio e notas de Rodrigues Lapa. Lisboa: Textos Literários, 1994.
Este poema não devia ter sido esquecido porque não é apenas sobre o amor entre duas pessoas, ou sobre amor não correspondido, ou sobre amor carnal ou neo-platónico – é também, ou até principalmente, acerca do amor e da ânsia que se podem sentir sobre uma “terra”.
Em redondilha menor, e portanto seguindo a rapidez musical das cinco sílabas métricas, o poema inicia-se por um mote que introduz parte do tríptico versificatório essencial a toda a composição – “serra” e “terra”, a que se juntará “guerra” (e para o qual não se conseguiu equivalente perfeito na tradução para inglês). A linguagem do poema é, à superfície, denotativa e referencial, assentando na materialidade dos montes erguidos, da serra, da terra, do mar. Rapidamente, porém, tal como o olhar do poeta tenta alcançar para além da serra, também a linguagem procura acompanhar este olhar, extrapolando o referente para atingir o sentido não-referencial – cada estrofe é iniciada por um vocativo que introduz elementos progressivamente mais abstractos e psicológicos. Dos montes erguidos, o poeta passa às ribeiras do mar, pedindo-lhes que não lhe travem as “lembranças”; em seguida, depois de descrever o fenómeno físico do crepúsculo, invoca o seu próprio olhar (“meus olhos”) para, num momento de completa introspecção, dizer a si próprio que não vale a pena esperar – “meu bem/já nam aparece”. Finalmente, o cair da noite é também a escuridão da alma. Maria Ema Tarracha Ferreira (Antologia do Cancioneiro Geral, Edições Ulisseia) informa que “guerra” equivale a “ânsia”, e tanto esta como Rodrigues Lapa interpretam o poema como uma composição de amor escrita por um poeta que se queixa da ânsia em que se encontra por estar longe da senhora. Penso que o poema se presta não apenas a esta interpretação, mas também a uma leitura de facto próxima do referente, em que “guerra” pode querer dizer “guerra” (há muitas formas de se estar em guerra), e em que a ânsia do poeta se deve a estar longe do seu país, que o atormenta por estar em tão terrível situação. Considerando que raras foram as vezes em que Portugal não esteve em situação crítica, e considerando também que este poema foi escrito por um português, gosto de o ler como uma confissão de angústia e amor não apenas pela senhora, mas igualmente pela terra, aquela de onde o poeta vem, o seu “bem” cujo destino é incerto e que por isso o deixa em ânsia.
Mesmo que vasta literatura sobre Cultura Portuguesa não o sublinhasse, qualquer português conhece e sente na pele a fragilidade de Portugal como projecto nacional. Os portugueses carregam consigo um stress constante que herdaram da História (por uma vez, a culpa não é nossa, é da História), e é isso que este poema, tão musical, tão ansioso, tão bonito, nos vem dizer – “abaixo esta serra,/ verei minha terra”, e até lá temos de aprender a viver com a insegurança, ou ânsia, constante. “É fado nosso/ é nacional/ não há portugueses/ há Portugal”.
Rita Faria
Rita Faria é professora na Universidade Católica Portuguesa, não sabe fazer mais nada sem ser ler e escrever e não quer fazer mais nada sem ser ler e escrever. Fora isto, gosta de filmes de terror, vampiros, fantasmas e zombies em geral. E considera que o português é a língua mais engraçada do mundo.