Antre tamanhas mudanças
Maria S. Mendes
Antre tamanhas mudanças
Antre tamanhas mudanças,
que cousa terei segura?
Duvidosas esperanças,
Tão certa desaventura...
Venham estes desenganos
Do meu longo engano, e vão,
que já o tempo e os anos
outros cuidados me dão.
Já não sou para mudanças,
mais quero ũador segura:
vá crê-las vãs esperanças
quem não sabe o qu’aventura!
Bernardim Ribeiro, “Antre tamanhas mudanças”, Antologia do Cancioneiro Geral, selecção e notas de Maria Ema Tarracha Ferreira. Lisboa: Ulisseia, s/d.
Este poema não devia ter sido esquecido porque é sobre envelhecer, e isso acontece-nos a todos. Por mais que queiramos manter a capa de um qualquer optimismo ou felicidade, o absurdo da velhice acaba por nos engolir sofregamente a vida, e não é só não conseguir ler legendas sem óculos ou adormecer um pouco mais tarde e acordar no dia seguinte como se tivéssemos sido atropelados – é também isto que Bernardim descreve, preferir a “dor segura” à irresponsabilidade da aventura. Os jovens querem ser jovens e acreditar em tropelias? O problema é deles, porque a vida não engana o velho poeta, ele que já consegue, até, responder às próprias perguntas com que a vida o interroga: que coisa poderá ter segura perante tanta mudança? Apenas a “desaventura”, já que a esperança é ilusão. A forma do poema, uma cantiga, que tipicamente começa por um mote (neste caso, de quatro versos) e se estende por uma glosa de oito versos de sete sílabas, dá relevo à austeridade verbal a que o poeta se remete – algumas cantigas contemplam glosas de dez versos, mas Bernardim, conciso, não viu necessidade de prolongar a filosofia por mais palavras.
Sendo sobre a velhice, o poema é também sobre a juventude, como se acabou de afirmar. Há uma contraposição interessante entre o poeta “desenganado”, ciente, a quem o tempo e os anos “dão outros cuidados” e os que, iludidos, arriscam ainda a esperança. O curioso é que o poeta parece quase desprezar esta irresponsabilidade pela indiferença que revela – os outros que façam isso, eu quero lá saber, eu tenho outras coisas com que me preocupar, nomeadamente com o pleonasmo “tempo e anos”, que impõem a certeza da “dor segura” e causam um certo tormento mental – “outros cuidados me dão”.
Assim, tal como noutras composições de Bernardim, este é um poema em que o poeta vive em e para si próprio, preocupa-se com os seus cuidados unicamente, e ao fazê-lo, em vez de cair num discurso egocêntrico que a ninguém interessaria, verbaliza uma consciência humanística e humana. A cabeça do homem, de qualquer homem, é o centro do universo – o mundo muda, mas ela fica. Nada se passa fora da mente e nada se pode passar fora dela, como bem demonstrará Descartes, cem anos mais tarde, ao fazer depender a própria existência de Deus do hoje amplamente conhecido cogito, ergo sum. E Bernardim, velho, sábio, impaciente e indiferente, já sabia disto.
No que toca à problemática do envelhecer, há um outro poema que penso ser também muito útil e que reza “I grow old, I shall wear the bottoms of my trousers rolled”. É o que acontece quando chegamos à idade em que certas coisas já não podem possivelmente incomodar-nos – nem calças enroladas nem a mudança do mundo e a má fortuna, como afirma Bernardim. Os novos ainda têm tanto a arriscar – e tanto a perder. Mas os velhos, não. O país é mesmo para eles.
Rita Faria
Rita Faria é professora na Universidade Católica Portuguesa, não sabe fazer mais nada sem ser ler e escrever e não quer fazer mais nada sem ser ler e escrever. Fora isto, gosta de filmes de terror, vampiros, fantasmas e zombiesem geral. E considera que o português é a língua mais engraçada do mundo.