Cantiga, partindo-se
Maria S. Mendes
Cantiga, partindo-se
Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d’esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
João Roiz de Castelo-Branco, “Cantiga, partindo-se”, Florilégio do Cancioneiro de Resende, 4ª edição, selecção, prefácio e notas de Rodrigues Lapa. Lisboa: Textos Literários, 1973.
Este poema não devia ter sido esquecido porque é (suspiro) lindo. E porquê? Este poema é lindo devido à sua “matéria linguística” propriamente dita, isto é, o que o torna bonito não é o tema extremamente filosófico, mas sim a forma como recorre à língua portuguesa para, através dela, criar um efeito impressionista, no sentido em que causa uma “impressão” por aludir repetidamente aos olhos e ao choro.
Assim, o poema recorre à repetição (do adjectivo “tristes”, do advérbio “tam”), à aliteração (“tristes”, “vistes”) e à pronominalização (“outros nenhuns por ninguém”) para invocar uma tristeza quase material – note-se que o referente principal do poema não é a Senhora (a presença dela é determinada pelo vocativo do mote, repetido no “cabo” ou término, embora com elisão da forma de tratamento “Senhora”), mas sim os “olhos”. São este últimos que estão tristes (de tal forma que a Senhora nunca viu, nem verá, “outros nenhuns por ninguém”); são também os olhos que estão saudosos, doentes, cansados, chorosos (novamente a referência a um acto de manifestação física, “chorar”), de tal forma que anseiam a morte “cem mil vezes mais do que a vida”. Note-se também que os olhos do poeta são apenas mencionados uma vez, no mote; esta referência é suficiente para serem os olhos o referente da glosa (isto é, são os olhos que estão “tam tristes, tão saudosos”, etc.), mas não para que sejam igualmente o referente do cabo. “Partem tam triste os tristes” – os olhos ou os “grandes amadores”, citando Bernardim?
O tema é o amor e a dor da separação, mas a dimensão do sofrimento é-nos dada pelos recursos linguísticos do poema, que já dissemos ser “impressionista” pela importância que atribui a referentes físicos, nomeadamente choro e olhos, que “adoecem”, pela repetição de palavras e, fundamentalmente, pelos paralelismos aliterativos. Sem este trabalho de artesão sobre a língua, o poema seria mais uma banal queixa de amor. Todos as temos, todos passámos por elas, de modo que a Oeste nada de novo. Mas a língua portuguesa – “nunca tam tristes vistes/outros nenhuns por ninguém” – essa, resplandece e dá ao poema a sua belíssima singularidade, criando ao mesmo tempo um efeito de simplicidade musical que faz com que toda a gente goste deste poema quando o lê (penso eu).
Rita Faria
Rita Faria é professora na Universidade Católica Portuguesa, não sabe fazer mais nada sem ser ler e escrever e não quer fazer mais nada sem ser ler e escrever. Fora isto, gosta de filmes de terror, vampiros, fantasmas e zombies em geral. E considera que o português é a língua mais engraçada do mundo.