The Grant
Maria S. Mendes
The Grant
It’s either this or bobcat hunting
with my friend Morris.
Trying to write a poem at six this
morning, or else running
behind the hounds with
a rifle in my hands.
Heart jumping in its cage.
I’m 45 years old. No occupation.
Imagine the luxuriousness of this life.
Try and imagine.
May go with him if he goes
tomorrow. But may not.
Raymond Carver, “The Grant”, Where Water Comes Together with Other Water(1985), in All of Us – The Collected Poems. Londres: The Harvill Press, 2003.
Este poema não devia ter sido esquecido porque é sobre o mistério de escolher fazer uma coisa em vez de outra.
O início do poema parece descrever um estado privilegiado: ou fico aqui a escrever poemas ou vou caçar linces-pardos com um amigo. Mais abaixo, o poeta revela a sua condição: tem 45 anos e nenhuma ocupação, ou seja, nenhum trabalho obrigatório diário. Esta situação peculiar é-lhe proporcionada pela bolsa que dá título ao poema, presumivelmente a Strauss Living Award, atribuída a Carver a 10 de Janeiro de 1983, garantindo-lhe a quantia anual de $35,000 durante cinco anos, com a possibilidade de renovação.
Esta bolsa é particularmente relevante no seu caso. Quando terminou o liceu, Carver trabalhou numa serraria com o pai; depois de se casar foi estafeta, empregado de limpeza num hospital no turno da noite, assistente bibliotecário, entre outros biscates. Contraiu dívidas para fazer cursos de escrita criativa, deu aulas em algumas universidades. Ao longo destes anos, escreveu sempre; chegava a ir fazê-lo para o carro durante a noite, já depois de ter os dois filhos.
Agora não precisa de se preocupar com o seu sustento ou com o sustento de quem dependa dele. Os versos “Imagine the luxuriousness of this life. / Try and imagine” são tanto uma interpelação ao leitor como a si próprio, no sentido de expressarem um espanto pessoal pela situação em que se encontra: nunca na minha vida eu imaginaria que isto fosse possível. Tal como a interpelação anterior não se reveste apenas de um carácter positivo, também o “It’s either this or” que começa o poema não dá apenas conta de um estado de bem-aventurança, podendo descrever também um estado de ansiedade: agora só há isto para fazer, ou ficar aqui a tentar escrever um poema, ou ir caçar linces-pardos com o Morris.
Ambas as actividades parecem provocar a mesma emoção: o verso “Heart jumping in its cage” qualifica tanto a actividade de caçar um lince-pardo como a de ficar em casa a tentar escrever um poema. Contudo, e mais uma vez, o verso poderá descrever outra coisa. O coração pode ficar acelerado não apenas com o gozo e a satisfação de perseguir um lince-pardo ou com o luxo de poder ficar a escrever um poema em vez de ir trabalhar, mas também com uma ansiedade subjacente a estas duas práticas: conseguirei caçar um lince-pardo?; conseguirei escrever um poema? Esta tensão, tornada fisicamente ameaçadora pela posse de uma arma — “running / behind the hounds with / a rifle in my hands” —, é semelhante ao grito desesperado de Wordsworth em “My Heart Leaps Up”: se eu na velhice não conseguir sentir êxtase ao ver um arco-íris, deixai-me então morrer.
Esta bolsa veio nos últimos anos da vida de Carver (que morreu aos 50), quando vivia com a escritora Tess Gallagher em Port Angeles. Nessa altura, comprometeu-se a escrever um poema por dia. Tinha, disse, desperdiçado demasiado tempo, e sentia-se culpado quando via televisão e até quando lia (Carol Sklenicka, Raymond Carver: A Writer’s Life, p. 401). Este sentimento de responsabilidade contribuiu certamente para que Carver continuasse a escrever quando mal tinha tempo para isso, e a tal sentimento podemos atribuir o “But may not” final. A expressão, composta por três termos negativos (“mas”, “talvez”, “não”), agrega a tensão que encontramos em todo o poema: a par do peso da responsabilidade está também aqui o êxtase de ter conseguido escrever mais um poema. Sendo incerto que o mesmo aconteça nos dias seguintes, tanto Carver como nós desconfiamos que se seguirá mais uma madrugada em que o Morris caçará sozinho.
Helena Carneiro
Helena Carneiro fez o mestrado no Programa em Teoria da Literatura (FLUL). É redactora e assistente editorial na Imprensa da Universidade de Lisboa. Tem tido quem lhe explique poesia e gosta muito de Philip Larkin, que na sua lápide preferiu ser denominado “escritor”.