Dyz-m’a myn meu coraçã
joana meirim
Dyz-m’a myn meu coraçã,
porque m’a isto nam calo:
- Pera que vos dou rezão,
poys vos nam chega payxam
deste cuydado que falo?
Ca se vos ele apertasse
asy como m’ele aperta,
e o voso assy penasse,
diryeys que se julgasse
o cuydar por morte çerta.
Nuno Pereyra, “Dyz-m’a myn meu coraçã”, Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, texto estabelecido, prefaciado e anotado por Álvaro J. da Costa Pimpão e Aida Fernanda Dias, Coimbra: Centro de Estudos Românicos, Instituto de Alta Cultura, 1973.
Este poema não devia ter sido esquecido porque serviu de mote a Miguel Esteves Cardoso na sua crónica sobre o amor, intitulada precisamente “Amor” e publicada n’A Causa das Coisas. A versão de MEC é um pouco diferente daquela que encontrei no Cancioneiro, pois reza “Dyz m’a mim meu coraçon / porque m’a isto nam calo, / poys ves nam chegua payxom / deste cuydado que falo”. De qualquer forma, foi através desta crónica que encontrei o pequeno e bonito poema acima, embrenhado no Cancioneiro Geral. Faz parte de uma longa composição dialógica em que Nuno Pereira e Jorge da Silveira (a ortografia dos nomes varia, o que, curiosamente, quer dizer que não havia ainda, na altura, “ortografia”) discutem assuntos amorosos, nomeadamente o “cuidar e o suspirar” e as vantagens e desvantagens de servir a “Senhora Dona Lyanor da Sylua”. Sabemos, por composições posteriores do Cancioneiro, que as vantagens foram de pouca monta – a cantiga 87 é novamente de “Nuno Pereyra à Senhora Dona Lianor da Sylua, porque em tempo que elle a seruia se casou”.
Por ser curto e expressivo, e por recorrer ao artifício interessante de fazer o poeta dialogar com o seu próprio coração, o poema deve ser lido. É um testemunho da poesia feita para cantar, com raízes nas formas populares e oralizantes, mas adaptado à temática que percorre o Cancioneiro, a das dores de amor (que, diga-se, não levam a lado nenhum). Comecei por considerá-lo banal por não exibir a profundidade intelectual de Bernardim Ribeiro ou Sá de Miranda. Mas a banalidade é apenas aparente. A proeza sintática deste curto poema explica a sua expressividade e sublinha a complexidade do pensamento – começa pelo vocativo “meu coração” para introduzir o discurso direto, dirigido ao mesmo coração (“Pera que vos dou razão...”), e depois prossegue com a explicaçao do poeta acerca do seu mal, sempre dirigido ao seu próprio coração. É o vocativo inicial que age como marcador linguístico da composição e que permite toda a reflexão acerca do atrevimento do coração do próprio poeta. Abre-se, assim, caminho para o artifício que há pouco enunciei, o complexo exercício de alteridade em que o poeta olha para o seu coração, que o faz sofrer, como se este residisse fora de si mesmo; como se fosse, talvez, a própria amada (“Ca se vos ele apertasse / asy como m’ele aperta, / e o voso assy penasse ...”).
Deste modo, não é apenas de proeza sintática que aqui se trata. É também, de facto, da tal profundidade intelectual que encontramos em Bernardim e Sá de Miranda, no sentido em que também estes (ou principalmente estes) exibem a impossível capacidade de olhar para si mesmos como se estivessem a olhar de fora. Para mim, leitora que não é capaz de concretizar esta operação filosófica tão complicada (embora útil, poupando, com certeza, muita consulta ao psicólogo), esta proeza é admirável. E tudo isto numa composição tão despretensiosa, tão pouco extensa, escrita tão descontraidamente. Assim, gosto deste poema porque é apenas aparentemente simples (e não será para todos conseguir escrever algo que é simples apenas aparentemente), e é esta simplicidade que, conforme Rasputine disse a Corto Maltese depois de, curiosamente, o ter tentado matar, nos dá “uma emoção”.
“Uma emoção” – não penso que se possa, nem que se deva, pedir mais ao amor e à literatura.
Rita Faria
Rita Faria é professora na Universidade Católica Portuguesa, não sabe fazer mais nada sem ser ler e escrever e não quer fazer mais nada sem ser ler e escrever. Fora isto, gosta de filmes de terror, vampiros, fantasmas e zombies em geral. E considera que o português é a língua mais engraçada do mundo.