Entrevista a Cyril Wong
Maria S. Mendes
Entrevista a Cyril Wong
Singapura, 31 de Agosto de 2018
Cyril Wong é um poeta prolífico, cujo último livro de poemas,The Lover’s Inventory, recebeu o 2016 Singapore Literature Prize.
JF: Uma coisa que me espantou nos poetas singapurenses é como as referências parecem ser anglófonas. Isto deve-se a uma questão educacional?
Sim, sim. Houve muitos grupos culturais diferentes a disputarem o poder em Singapura, e isso levou o nosso primeiro-ministro a decidir que o idioma oficial seria o inglês, para tornar as coisas mais uniformes. É claro que isso causou imensos problemas com a nossa tradição chinesa. Rapidamente as coisas ficaram muito feias. Ao mesmo tempo, Singapura é um país muito jovem; é nítido que a geração mais velha se sente um bocado excluída, porque o inglês deles não é o melhor. Foram obrigados a aprender essa língua numa fase mais avançada das suas vidas. Para os podermos ajudar, muitos de nós em Singapura conseguimos falar um pouco de tudo.
JF: Falas um bocadinho de chinês, mais precisamente mandarim, suponho.
Sim.
JF: E malaio?
Não, mas consigo perceber muitas palavras. O chinês é muito complicado – há tantos dialectos. E as gerações mais velhas falam dialectos muito obscuros. Gostava de ser melhor nisso. Dou por mim numa posição absurda: compreendo o que estão a dizer, mas não consigo responder. É um grande embaraço.
JF: O facto de o inglês se ter tornado no idioma principal levou aparentemente ao facto de os poemas em singapurense parecerem estar em diálogo com a Literatura Inglesa e não, por exemplo, com a Literatura Chinesa. Estudam Literatura Asiática na escola?
Só literatura em língua inglesa. É uma questão muito interessante. Penso que se resume ao facto de até a nossa educação estar assente em conceitos muito práticos. Toda a gente estuda livros em inglês, mesmo quando são de autores chineses ou indianos. Escolhemos a dedo autores de outras culturas que já escrevem em inglês. Imagino que isto possa levar a uma falta de diversidade. Não estudamos necessariamente contos ou poemas nas línguas vernaculares. Estou certo de que alguma coisa se perdeu neste processo, mas ainda não sabemos o que foi.
JF: Imagino que tenham uma tradição oral. Estava a passear pela Read Bridgee diz-se que os trabalhadores chineses costumavam ir lá aos sábados para ler contos e poemas.
Uma coisa é certa: isso já não acontece.
JF: Mas esta tradição oral existe, imagino.
O governo, como deves ter intuído, é muito ditatorial. Durante um período de tempo, todas as representações públicas requeriam uma autorização. Entretanto relaxaram-se as regras para recitais de poesia e espectáculos musicais, mas se dermos um recital em que poesia seja de natureza controversa, ainda corremos o risco de ter problemas legais.
JF: Não tinha a certeza se podíamos falar sobre isto sem que entrasses em apuros. [Risos.]
Na verdade, não me preocupo nada com isso. Já disse coisas piores. [Risos.]Dada a nossa realidade na sua dimensão mais prática, o governo viu-se obrigado a tomar decisões muito difíceis e, por vezes, muito cruéis. Julgo que uma das decisões menos nitidamente cruéis foi eliminar as tradições orais e todos os dialectos. O que acontece posteriormente é haver uma estratégia retrospectiva em virtude da qual estas tradições orais estão a ser restauradas, mas em inglês. Isto está a acontecer por razões práticas, uma vez que o número de pessoas capazes de compreender tudo é muito limitado, mas a própria estratégia torna-se noutro problema prático.
JF: Quer dizer, tem vantagens.
Sim, mas sem dúvida também tem desvantagens. Os especialistas em linguagem vernacular dizem-nos que as perdas foram imensas.
JF: Tens um doutoramento. Qual foi o tema da tese? Estou curiosa porque pareces ser um escritor prolífico em todos os campos.
A palavra ‘prático’ vai aparecer imenso nesta conversa.
JF:[Risos] Sem problema.
Não conseguiria sobreviver como poeta. E sempre disse aos meus professores que queria ser estudante para sempre.
JF: O mesmo aconteceu comigo. [Risos]
Queria ir às salas dos professores, conversar e simplesmente aprender coisas. Decidi fazer o meu mestrado porque era gratuito– atribuíram-me uma boa bolsa de investigação. Depois prolonguei a minha estadia para lá do previsto e aquilo tornou-se num doutoramento. O tema da tese podia ser qualquer um, não tinha grande importância. A minha dissertação de mestrado era sobre poesia norte-americana, que eu adoro, e para o doutoramento escrevi sobre o que significa escrever um romance cosmopolita. Andava fascinado pela ideia do cosmopolitismo e da sua grande relevância para a literatura contemporânea, em especial a de língua inglesa. Concentrei-me em dois autores: J. M. Coetzee e Kazuo Ishiguro. Será que o conceito tem algum significado? E como é que estes romances reflectem as preocupações decorrentes da globalização e do cosmopolitismo?
JF: És um poeta cosmopolita, de alguma forma?
Enquanto poeta, ocupo-me muito do (desconfio imenso desta palavra) universal– é isso que procuro. Trata-se de uma tensão que exploro na minha poesia. Procuro chegar a uma audiência universal. Escrevo sobre coisas semi-universais, mas partindo de uma perspectiva muito pessoal.
JF: O verbete no The Oxford Companion of Modern Poetrydescreve-te como 'poeta confessional’. Percebo o que querem dizer, mas ao mesmo tempo parece que usam esse termo porque te concentras em coisas a que os poetas singapurenses não costumam dar atenção.
O problema é que muita da poesia de Singapura é praticamente o oposto daquilo que eu faço.
JF: É o medo que está por detrás disso?
Sim, sem dúvida que o medo explica uma enormeparte disto. Pusemos a carroça em frente aos bois. A história da poesia do nosso país arranca com a esfera pública. Para se ter sucesso enquanto poeta, é preciso falarmos de coisas públicas: o leão, este edifício, aquele edifício, a beleza de Singapura... Temos medo de falar de nós mesmos de uma forma mais profunda.
Mas eu resisti a essa exigência. Precisava de sentir o que era natural para mim, e assim escrevi poesia confessional. Fi-lo de uma forma orgânica. O problema foi quando comecei a publicar. Essencialmente toda a gente disse para eu me calar. Que não devia estar a fazer aquilo. De certo modo, senti-me como se fosse um Activista Literário. Estava a preencher um vazio.
JF: Tens um poema chamado ‘Interrogation’. Houve consequências práticas? Achei estranho teres ganho prémios como o Singapore Literature Prize quando, ao mesmo tempo, estavas proibido de tratar de certos tópicos.
Acabaste de resumir a experiência da prática singapurense. Cheia de conflitos internos e muito ambivalente.
JF: Portugal teve uma ditadura até 1975 – estamos familiarizados com este tipo de coisas.
Acho que para vocês foi pior. Bem pior.
JF: Em muitos aspectos, sim. Este tipo de construção social é semelhante: vocês têm um leão, nós tínhamos outros ícones cuja finalidade era a elaboração de uma identidade nacional. Em Portugal só podíamos escrever sobre certas coisas de uma forma cifrada, tu ganhaste prémios ao escrever poemas muito explícitos.
Foi uma luta para chegar a esse ponto. Inicialmente também usava uma linguagem cifrada. O género sexual nem sempre era claro. Acho que foi só a partir do segundo livro que começou a ser mais nítido.
JF: É proibido?
Não é proibido. Se escrever sobre certas coisas com demasiada clareza e ninguém souber quem és, ninguém te vai publicar. Primeiro temos de ser alguém. Eu tive imensa sorte. O meu primeiro livro, que foi um êxito, é muito cifrado. Senti-me como se estivesse a mentir só para conseguir meter o pé na porta. Os meios de comunicação deram-me muita atenção. Foi de facto uma situação absurda. Senti-me grato pela atenção, mas gostava que não tivesse sido por esse livro. É simplesmente um livro que eu odeio. Mas decidi usar esta vantagem para abordar assuntos mais dolorosos, one-night stands…
JF: Gosto imenso desses poemas. Penso que li numa entrevista que tinhas planos de parar de escrever, mas isso foi em 2015. Imagino que tenhas mudado de ideias.
Julgo que nunca irei parar de escrever. Essa afirmação não foi muito feliz. Costumava ser muito activo no Facebook. Apercebi-me de que sou muito ingénuo no que respeita ao Facebook. O Facebook é muito público [risos]. Fiz um comentário no Facebook neste molde: ‘Porque é que ainda me dou ao trabalho?’. Ficar a saber que uma biblioteca tinha destruído alguns livros infantis que tinham temas queer. Singapura não está a mudar. Se vou escrever livros que nunca serão aceites nas prateleiras de uso comum da biblioteca…
JF: Eventualmente serão.
Espero que sim. Todos sabemos que Singapura é um país muito jovem. Digo sempre a mim mesmo: ‘Não amargures demasiado depressa’.
JF: Mas, como já disseste, terás uma audiência mais vasta, mais cedo ou mais tarde. A menos que haja consequências, é possível que venhas a ser preso?
Não, porque os temas gay estão num lugar muito baixo na lista de coisas que o governo considera polémicas. Os assuntos mais importantes seriam, por exemplo, o comunismo, a raça, a religião…
JF: Estamos a falar de ter uma atitude crítica em relação a questões raciais.
Sim. Não podemos criticar, não podemos fazer observações racistas, não podemos afrontar a religião de terceiros – é um “não” absoluto.
JF: Estava a ler alguns livros sobre Lee Kuan Yew [o primeiro-ministro de Singapura durante três décadas], e ele disse que quando começou a reconstruir Singapura tinha medo que se tornasse num lugar como Beirute. Ele tinha opiniões fortes sobre a forma como todas as religiões tinham de viver em conjunto.
Ele compreendia. Se olhares para outros países, quando a tensão ultrapassa os limites, dão-se motins e problemas de todo o tipo. E Singapura é muito pequena. Qualquer tipo de fricção facilmente se descontrola. Singapura está feita ao bife. Estamos constantemente em modo de sobrevivência. Temos de preservar a harmonia a todo o custo. De certo modo, é esta a raiz da psique singapurense: temos de manter a harmonia, ou Singapura vai fracassar. É uma ideia com muito êxito, efectivamente toda a gente acredita em Lee Kuan Yew.
JF: Um jornalista perguntou-lhe se isso não era um bocado paranóico, disse-lhe que compreenderia isso depois da guerra, ou mesmo em 1965, mas agora?
Penso que o modo mais optimista de olhar para questão é perceber que ele não queria que nenhum grupo racial em Singapura fosse marginalizado por outro. Porque, vejamos os nossos vizinhos: temos aChina, Indonésia, Malásia…se um grupo em particular tentar dominar…
JF: Sim, compreendo isso.
Então o governo mantém-se vigilante para assegurar que isso nunca acontece. É positivo e negativo. Por vezes dá azo a uma série de leis de censura realmente ridículas, e multas abstrusas. Por exemplo, se levar à cena uma peça em Singapura, precisa de uma licença. E para obter uma licença a peça tem de ser... quase uma peça infantil. Não pode falar sobre isto, não pode falar sobre aquilo, tem de garantir que a personagem malaia não é criticada em termos raciais. Não pode ter uma postura crítica, não pode exprimir-se sem freios... e, como se não fosse suficiente, acho que a maior preocupação é que não pode criticar o governo. Assim, temos: primeiro o governo, a raça, a religião e depois tudo o resto – incluindo os temas gay.
JF: É uma cidade única, isso posso confirmar.
É, é mesmo. O resultado é que toda a gente está viciada nesta harmonia e no facto de Singapura ser tão linda. É a recompensa por toda esta repressão. E então muitas pessoas aqui já não questionam o estado das coisas, porque estão tão acomodadas.
Singapura é uma cidade que, por acaso, teve algum sucesso e que agora está lentamente a crescer e a perceber que há coisas mais importantes do que a economia e ser um centro global. Acho que temos de preservar certas coisas. Neste momento, a reciclagem é um tema que está na ordem do dia. Mas por vezes torna-se numa exigência demasiado pesada. Agora fala-se sobre reciclagem, mas ninguém quer saber. Condicionaram-se as pessoas a não se preocuparem com a natureza, porque é que deviam começar a preocupar-se agora? Então o governo tem estado a lançar estas campanhas absurdas. Acho que a campanha mais absurda que já tivemos foi a campanha dos sorrisos, para nos motivar a sorrir mais.
JF: A sério?
E também a campanha da bondade, para sermos mais bondosos. É a isso que me refiro quando falo de um país que está a crescer. Começamos a perceber que não devíamos ser hostis e terríveis, tanto uns para os outros como para o ambiente... não! Criaram-nos assim, agora é um bocadinho tarde demais.
JF: Porque é que é necessário sorrir mais? Para os turistas ou uns para os outros?
Acho que essa questão fica em aberto. Acho que tem que ver com o turismo.E há outro facto: quando se obriga as pessoas a sorrir mais, é menos provável que critiquem o governo. Uma coisa óptima no Facebook é que, quando se reprime as pessoas durante tanto tempo, essa energia toda tem de ir para algum lado. E o Facebook tornou-se esse espaço. Sempre que há uma avaria num comboio, as pessoas ficam histericamente enervadas com o governo.
JF: O Facebook é permitido?
Sim.
JF: Mas há restrições impostas à imprensa?
Sim.
JF: Têm acesso a tudo na Internet?
Em termos de jornais e coisas desse tipo, sim – está tudo disponível online.
JF: Então é outra contradição, porque é possível lê-lo noutro sítio, uma vez que todos falam inglês. Só não podem escrever sobre esses assuntos aqui.
O Facebook é um espaço onde todos se podem soltar.
JF: E não são penalizados por isso?
Depende da forma como as pessoas se expressam, percebe? Não é o que alguém diz, é a forma como o diz. Por exemplo, ‘Singapura é supostamente um país do primeiro mundo, mas na verdade isso são só tretas, está tudo podre’. Depende da forma como se diz, certo? Nunca poderia acusar um ministro directamente, isso não pode fazer. Faça isso e mete-se em apuros.
JF: Na tua poesia, parece que as pessoas dão mais atenção ao lado confessional, mas tens poemas muito políticos que são abertamente críticos.
No que toca às regras de censura de Singapura, o governo simplesmente considera que a poesia não tem importância. Um poeta consegue safar-se com muito mais do que, digamos...
JF: Um romancista, por exemplo?
Sim, ou um cineasta. O cinema está na posição cimeira da lista. O número dois seria o teatro, e tudo o resto em terceiro lugar. E os escritores? Eles simplesmente pensam: mas ainda alguém lê livros?
JF: Quantos exemplares publicas?
O meu caso é um bocado invulgar: cada livro pode ascender aos 1000, 2000 exemplares.
JF: Isso é imenso!
Sim, mas geralmente a tiragem para um poeta estreante andaria à volta dos 200 a 500 exemplares. O governo olha para estes números e pensa: porquê darmo-nos ao trabalho?
JF: Alguns poemas são extremamente críticos da religião. Por exemplo, o poema sobre João Paulo II.
O catolicismo fodeu-me a sério.
JF: Tiveste uma educação católica.
Sim. O meu pai era professor de catequismo. Infernizou-me a vida por ser gay. E o mais engraçado é que a Igreja cativou-me quando eu era muito novo. Acho que muitos rapazes gay ou que vêm de fora da Igreja têm uma história semelhante. Antes da confirmação, tínhamos todos uma ideia idealista do que a religião é, e alguns de nós até queriam vir a ser padres. Simplesmente gostávamos do charme e encanto da coisa [risos]. Ou seja, fiquem logo convencido. O problema é que emocionalmente, quando te aliciam quando és criança, a queda vai ser muito dramática. Assim que percebes que vais para o inferno por seres quem és... Eu entrei a sério em desespero e exasperação. Todas as emoções negativas. Acho que a poesia se tornou numa espécie de farol.
JF: Tens poemas de amor lindos, como ‘Missing’ ou ‘The Laundry Can Wait’.
Obrigado.
JF: Pareces escolher um tema para cada livro. Por exemplo, o teu último livro é fantástico, aquele que tem o inventário...
O meu companheiro chama-lhe o livro indecente.
JF: Ele gostou do livro?
Disse que revelava todos os seus defeitos. Muito do livro é sobre ele. Ele não dá todo o valor a isso.
JF: Bom, o teu companheiro vai ficar para a posteridade.
Sim, mas é sempre o meu lado da história. O poeta nunca é justo.
JF: É verdade.
E ele sabe isso. É por isso que eu lhe estou sempre a dizer que pelo menos revelo o seu melhor lado. Não o torno numa espécie de ogre, ou qualquer coisa assim. Esse papel cabe ao meu pai, [risos].
JF: Tens um tema em mente antes de planear um livro, ou, a certo ponto, os poemas congregam-se?
Sou um poeta instintivo. Geralmente começo com uma imagem, ou uma memória, ou uma emoção, e depois descrevo-a num poema, e depois penso noutro poema com o tom do primeiro poema. Se estou a escrever sobre sexo a partir de um nível, desloco-me para outro nível que oferece uma perspectiva completamente diferente. E as pessoas vão pensar: ‘Ah, estou lançado’. Continuo assim, e depois escolho os melhores poemas. É realmente orgânico. De início, não tenho uma estrutura original.
JF: Mas ao mesmo tempo és virtuoso no modo como usa a forma. Pensas em rimas ou metro quando escreves?
Acho que isso resulta de um tipo característico de espírito lúdico que simplesmente se manifesta. Não afirmo conscientemente: ‘hoje este poema tem de rimar’. Simplesmente penso: ‘vai ser engraçado se escolher uma palavra que soe bem com aquela’. É qualquer coisa que me dá gozo, não reflicto muito sobre isto.
JF: Alguns escritores detestam escrever; é-lhes penoso. Para ti parece ser um processo positivo.
A angústia vem ao início. A poesia é uma forma de ultrapassar a angústia. É uma ponte para escaparmos à dor. Julgo que isso responde à questão sobre a origem dos poemas. O poema nasce de muita dor e das vicissitudes da vida. E os poemas ajudam-me a resolvê-las. A escrita e em especial a conclusão da escrita sabem-me bem.
JF: Isso é óptimo. Perguntamos sempre se há coisas na poesia que realmente detestas. Pode ser um cliché ou uma figura de estilo…
A desonestidade.
JF: Queres elaborar a resposta?
Quando leio um poema, não importa em que estilo está escrito. Mas consigo sentir se o poeta se está a esconder atrás de uma abstracção ou da forma e simplesmente a não dizer toda a verdade, ou a indisponibilizar-se para estar nu e vulnerável o suficiente para interrogar toda a perspectiva do assunto. Por vezes, os poetas não são os melhores seres humanos. Eu não sou um grande ser humano. E quero que isso fique assente num poema. E quando os poetas se tornam no artista numa montanha a declarar a verdade do mundo – essa postura desagrada-me mesmo. Alguns poetas são pródigos em exercícios formais e experimentação, mas simplesmente não são honestos.
JF: É vazio, é um tipo de discurso vazio.
Sim, mas por vezes escapam impunes. E isso inspira outras pessoas a serem tão desonestas quanto eles.
JF: Sim, é verdade. E figuras de estilo ou coisas de que gostes em particular?
Adoro verso livre. Adoro a forma do poema em prosa, pois têm um pouco de tudo. Há um certo lirismo que vem com o discurso coloquial, um certo ritmo e movimento. Mas também há uma estrutura. É muito paradoxal. Neles, há algumas regras, mas também há espaço para as atirarmos para o lixo se nos apetecer.
JF: Quais são os poetas de Singapura de que gostas?
Adoro o Arthur Yap, que é uma grande inspiração para mim. Não somos nada iguais e, no entanto, há qualquer coisa de campna forma como ele escreve. Um certo espírito lúdico a que eu por vezes aspiro. Mas eu tento sempre conjugar isso com um sentido profundo de honestidade sobre a minha vida. O Arthur tenta desviar-se da sua vida o mais que pode, o que é muito, muito interessante. Outra pessoa de que gosto muito é a Tania De Rozario, uma poeta eurasiática. Penso que ela só publicou um ou dois livros. Os poemas dela lembram-me os meus na sua confessionalidade. Também tratam de temas queer. Mas a voz dela é muito mais forte e resiliente do que a minha. É algo que eu admiro. Porque, lá está, é diferente de mim. Eu sou muito mais vulnerável e choramingas. Mas a visão que ela tem do mundo expressa imensa força. Adorava ser mais assim. Não tenho essa força.
JF: Vou procurar saber mais sobre ela.
Acho que também consegues encontrar os poemas dela na Internet. Tem um website e tudo.
JF: E Edwin Thumboo?
Não podemos falar da poesia singapurense sem falar de Edwin Thumboo.
JF: Fui à Biblioteca Nacional pesquisar livros e ele estava em destaque. Para mim, a sua poesia parece demasiado nacionalista, mas consta que ele é o poeta número um de Singapura.
É uma imagem de si que ele cultivou muito conscientemente. Imagino que tenha sido um gesto muito oportunista. Ao mesmo tempo que Singapura se desenvolvia e tornava neste país ele decidiu que a nossa poesia devia cantar Singapura; apoiar a nação. Ele assumiu a tarefa de se tornar nesse artista. Isso coloca-o para sempre numa posição única para a posteridade, certo? É um bocado lastimável – não sei se ele considera isto lastimável porque penso que ele se acha muito importante [risos]– porque, se ler um número suficiente dos seus poemas, percebe que ele também escreve sobre outras coisas. E alguns dos seus poemas de amor sobre a sua mulher…
JF: Ah, não li esses. Tenho de os procurar.
Aí está – tens de os procurar. Para mim, essa é que é a poesia verdadeira dele. Os poemas em que fala da sua vida, do seu amor, das suas qualidades. Esses poemas são para mim os mais memoráveis, e não os poemas sobre o Merlion, ou sobre este ou aquele edifício.
JF: Foram esses que eu li. Quer dizer, tem bons versos, mas parece algo artificial.
Ele é a quintessência do poeta pós-colonial. Os seus antepassados poéticos são Eliot, Yeats, Keats. Ele escreve nesse estilo. Tem imensa habilidade em pedir emprestado a esse estilo, a torná-lo seu. O que o torna único. Hoje em dia, só ele pode fazer isso.
JF: Falaste da posteridade. Acha que te posteridade vai recordar?
Felizmente fui bastante afortunado. Em certa medida, sou budista. Penso que o meu objectivo existencial em Singapura tem sido lascar a parede do conservadorismo que dita o que pode dito através da poesia, da arte. É só isso que eu tento fazer. Publicar os meus poemas permitiu-me oferecer algo que tem tanto ou mais valor: pude estabelecer ligação com outros leitores solitários e queercomo eu. Tudo isto é muito temporário, e eu estou em paz com isso. Desde que os meus poemas tenham dado algum consolo a alguém... não quero saber o que acontece depois de eu morrer.
Entrevista traduzida por João Brandão