Vários, David Gewanter
Maria S. Mendes
Traduções de Margarida Vale de Gato
Língua Não Materna
Primeiro, Atámos uns aos outros
A seguir, Cocos para nadar
Então, Disparam Soldados em Barco
Enquanto, Muitos a morrer
E depois, Nadámos com Pessoas mortas
Mais tarde, Chegamos a terra
Finalmente, Deixámos nossos Amigos mortos.
Que nota merece este exercício?
TPC dobrado como um lenço,
Pequeno caderno de choros, escaras, fuga —
E ainda assim corrijo as blasfémias
da pontuação, do vernáculo;
a melodia inglesa ajudá-los-á a viver.
Ao desmazelado rapaz hmong
namoriscando a espevitada de Manágua —
ensinei-lhe como convidá-la a sair,
e a ela a dizer que não com delicadeza;
eu com sotaque e decoro suburbanos
impecáveis e tiranos como
os vistos que dou às respostas certas
tacos de golfe cor de rosa no papel.
Já saberão, para o ano, dar conversa que
lhes valha, em vez de sorrirem
como hoje, ao ouvir a minha toada de Noite Feliz—
Em coro se juntam, acanhados e transidos,
o químico do Saigão, o atemorizado do Haiti, a moldar
as palavras — Jesus Salvador — que eu uma vez disse
ao meu professor de música os judeus não deverem cantar.
Poemas de David Gewanter
English I
FIRST, We tied to each other
NEXT, Coconuts for the swimming
THEN, The Boat-Soldiers shoot
MEANWHILE, Many dying
AND THEN, We swam with dead People
LATER, We get on the land
FINALLY, We left our dead Friends.
What grade does this exercise deserve?
Homework folded like a handkerchief,
a little book of tears, burns, escape-
And still I mark the blasphemies
of punctuation, common speech;
the English tune will help them live.
Rickety Hmong boy, flirting simply
with the loud girl from Managua--
I taught him how to ask her out,
taught her how to say no, nicely;
my accent and suburban decorums
are tidy and authoritative as
the checks I make for right answers,
the rosy golf-clubs on the page.
By next year they'll talk their way
out of trouble instead of smiling
as they do hearing me drone Silent Night --
They join in, shy and hypnotized,
Saigon chemist, cowed Haitian, miming
the words I once told my music teacher
that Jews shouldn't sing: "Holy Infant."
O título “English I” [“Língua Não Materna”] aponta para um desequilíbrio a grande escala, com implicações neo-imperialistas acerca da força cultural da língua atualmente dominante do comércio, sugerindo-se com ironia: “the English tune will help them live.” [“a melodia inglesa ajudá-los-á a viver.”] Além do mais, a última estrofe marca de alguma forma a voz lírica como tendo ascendência judaica, o que, em conjunto com os “accent and suburban decorums” [“sotaque e decoro suburbanos”], estabelece um contexto específico de “americanidade”, invocando uma historicidade cultural, a pesar sobre a tarefa intercultural que é a tradução de poesia. No entanto, escolhi universalizar o título do poema em português, “Língua Não Materna” (termo por vezes usado na literatura pedagógica para o ensino do português como língua estrangeira).
* No final, o poema ainda manteve a “melodia inglesa” para marcar a posição da língua dominante; agradeço ao Bernardo Palmeirim ter discutido estas opções comigo e pelas sugestões que me fez para uma melhor tradução de “English I”.
A Autópsia do Meu Pai
A que ele fez, quero dizer, e me levou a ver
aos 13 anos. Fiquei tão branco como a
velha que ali se estendia nua; mas enquanto
ele chocalhava instrumentos, examinei-a
brevemente, a cinza morta dos mamilos,
o crespo tufo entre as pernas (“Ainda preto?
Não devia estar cinzento?”) O pai assentava
quanto ela media, o peso, a tonacidade, ao
microfone dizia-me como ela vivera,
do que adoecera. “É como ser detective,
só que eu respondo às minhas perguntas.
Ora toca aqui.” Mas eu não quis, eu queria
que o corpo dela resistisse ao interrogatório,
que estranhamente ela nunca tivesse dito “aah”
a um médico. E ele partiu-a, serrou-a ao meio,
ao que se abriu como uma batata doce ou saco
da tropa; aí se meteu o pai com cuidado para recolher
uma mão-cheia de material, tudo amarfanhado
como a roupa interior das gavetas da mãe. Leu-
-lhe as entranhas como um padre; testando
os canos, fatiando o coração em filhós
tão finas que brilhavam ao microscópio —
até que ela lá lhe deu uma pedrinha castanha
que eu toquei entre o indicador e o polegar
dele, que repôs a peça. A história da morte, deduzida
de factos mais rijos que os ossos — enquanto mo dizia
eu ouvia-lhe a voz a levantar-se de alegria…
Quase não tinha paciência para a sua casa
e para as desleixadas anatonomias desta, para
a “domesticidade incompetente” da mulher
de noite, sentava-se com os diários e as bebidas,
compacto, austero, um microscópio introvertido.
Agora nem sai de casa à espera do correio,
Há anos que não corta um corpo. Telefona
todos os fins-de-semana, dá novidades antigas
como dores nas cruzes e falamos sem medo.
Eu achava que era capaz de abri-lo aqui mesmo
com um só golpe de caneta como o cadáver exposto
a exame, mas cubro as páginas em que me exponho
e ele continua vivo na seguinte.
My Father's Autopsy
The one he did, that is, and took me to
when I was 13. I turned as white as
the old woman lying naked there;
but as he clanked out tools I inspected her
quickly, the dead cinder of her nipples,
the stiff tuft at her crotch ("Still black?
Wouldn't it turn gray?"). Dad took stock
of her length, weight, muscle tone, telling me
or the microphone how she lived,
what made her sick. "Like being a detective,"
he said, "except I answer my own questions.
Here; touch this." But I wouldn't, and
I wanted her body to resist interrogation,
prayed weirdly she never said "aah" for a doctor.
Then he slit and sawed her down the middle –
she opened as easily as a yam, or a duffel
bag; dipping delicately in, Dad scooped
out a handful of stuff, all jumbly
like underwear from Mom's dresser. He
read her guts like a priest: proving
the tubes, slicing wafers from her heart,
so thin they would glow under lens-light –
at last she yielded him a brown pebble
which I felt between his finger and thumb;
then he put it back. Death's story, deduced from
facts hard as bone – as he talked me through it,
I could hear the joyful lift in his voice….
He had little patience for his house,
its prattling unready anatomies,
his wife's "incompetent housekeeping"
at night he sat over journals and drinks,
compact, severe, inward as a microscope.
Now he's home all day waiting for the mail,
hasn't cut a corpse for years. He calls
every weekend, his news familiar
as a backache, and we talk without fear.
Once I thought my pen would open him here
like the corpse on its single pan of judgment;
but as I cover this pan with pages
he is alive on another one.
Wellfleet, Época Baixa
The doctors do not read the sea, or the grindstone beach; swaddled in holiday hats and sunglasses, they doze like ancient directors on the set, while salt-air and neap tide winds gently abrade the flesh, until their ash of illness crumbles and
drifts away, miseries given back to nature each August – motes for the crab to pick, mulch for the beach-flower – until, scrubbed clean, the aged ozone-babies return to their cities, ready for another year.
Now, in November, the beach performs for no one, a soup of rock and water waiting for August, washing itself absently —
Exhalations rise through cold air; clouds twist like rags, like lancets or gauze. No heroic gestures. Just headless statues of mist, darkening as their bellies grow.
Wellfleet, Época Baixa
Os médicos não sabem ler o mar, nem a orla amolada da praia; resguardados por chapéus e óculos escuros em modo de férias, dormitam como realizadores vetustos nas rodagens, enquanto brisas de salsugem e marés mortas erodem a carne com brandura, até que se esboroa a cinza da doença e-
vanescendo, devolvidas à natureza as misérias a cada Agosto — folículos que esfacela o caranguejo, adubo para a flor das dunas — até que, bem esfregados, esses bebés do ozono envelhecidos regressam às suas cidades, prontos para um ano mais.
Agora, em novembro, a praia não se exibe para ninguém, sopa de pedras e água que aguarda agosto e se vai distraidamente lavando —
exalações que sobem no ar frio; nuvens torcidas como trapos, tais lancetas ou gaze. Gestos heroicos nenhuns. Só estátuas decapitadas de névoa, escurecendo enquanto lhes crescem as barrigas.
Margarida Vale de Gato está numa relação aberta com a poesia. É tradutora literária, professora e investigadora na FLUL, nas áreas de Estudos Norte-Americanos e Tradução Literária. Tem publicado ensaios e livros, principalmente sobre Edgar Allan Poe. Publicou poemas em revistas e antologias de repercussões homeopáticas, e os livros Lançamento (Douda Correria, 2016) e Mulher ao Mar (Mariposa Azual, 2010), que já teve duas edição aumentadas (2013 e 2018) e terá futuras.