Guinizelli e Orbicciani
Maria S. Mendes
"Busca abrigo Amor no coração gentil", Tradução de Simão Valente
Busca abrigo Amor no coração gentil
como no bosque o pássaro na verdura;
e não criou Amor antes do coração gentil,
ou gentil coração antes de Amor, natura:
no momento em que houve sol
logo houve esplendor luzente
e não o houve antes do sol;
e Amor na gentileza toma lugar
tão naturalmente
como calor no fogo a brilhar.
Fogo de amor em gentil coração se acende
como a virtude na pedra preciosa,
que da estrela valor não lhe descende
antes que o sol dela faça gentil coisa;
pois o sol extrai, com labor,
pela sua força aquilo que lhe é vil,
dá-lhe a estrela então valor:
e o coração que por natureza fora
eleito, puro, gentil,
como estrela a senhora enamora.
Uma só razão põe no coração gentil
Amor e ao fogo sobre a dupla vela:
brilha alto e a seu gosto, claro, subtil
e de feroz maneira. Assim se revela
a torpe natureza:
enfrenta amor como a água à quente
chama: com frieza.
Amor, do gentil coração habitante,
aí é pertencente
como ao ferro é o diamante.
O sol fere a lama todo e cada dia:
é sempre vil, e não perde o sol calor;
diz o altivo “nasci na aristocracia”;
é ele a lama, é o sol gentil valor:
que não se dê confiança
a uma nobreza que possua
por coração a herança.
Se gentil virtude o coração não tem
brilha como na água a lua:
o esplendor das estrelas o céu retém.
Resplandece mais aos anjos no céu
Deus criador que o sol a nosso olhar:
compreende a mão que traça para lá do céu,
e obedecendo-Lhe fazem o céu girar;
e por isso é-lhe consequente
do justo Deus a bendita perfeição,
tal como, verdadeiramente,
é a bela senhora, que faz brilhar
nos olhos do seu servo a aspiração
gentil de lhe obedecer e não se soltar.
Senhora, dirá Deus: “Que atreveste?”
minha alma estando à Sua frente.
“O céu passaste, enfim a Mim vieste,
e em vão deste amor a Mim pertencente:
que a Mim convém esse louvor
e à rainha do digno reino,
onde cessa todo o temor.”
“Ela é como um anjo” dir-Lhe-ei,
“que viesse do Teu reino;
ao amá-la afirmo que não pequei”.
"Al cor gentil rempaira sempre Amore", Guido Guinizell
Al cor gentil rempaira sempre Amore
come l'ausello in selva a la verdura;
né fe' Amor anti che gentil core,
né gentil core anti ch'Amor, natura:
ch'adesso con' fu 'l sole,
sì tosto lo splendore fu lucente,
né fu davanti 'l sole;
e prende Amore in gentilezza loco
così propïamente
come calore in clarità di foco.
Foco d'amore in gentil cor s'aprende
come vertute in petra prezïosa,
che da la stella valor no i discende
anti che 'l sol faccia gentil cosa;
poi che n'ha tratto fòre
per sua forza lo sol ciò che li è vile,
stella li dà valore:
così lo cor ch'è fatto da natura
asletto, pur, gentile,
donna a guisa di stella lo 'nnamora.
Amor per tal ragion sta 'n cor gentile
per qual lo foco in cima del doplero:
splendeli al su' diletto, clar, sottile;
no li stari' altra guisa, tant'è fero.
Così prava natura
recontra amor come fa l'aigua il foco
caldo, per la freddura.
Amor in gentil cor prende rivera
per suo consimel loco
com'adamàs del ferro in la minera.
Fere lo sol lo fango tutto ’l giorno:
vile reman, né ’l sol perde calore;
dis’omo alter: «Gentil per sclatta torno»;
lui semblo al fango, al sol gentil valore:
ché non dé dar om fé
che gentilezza sia fòr di coraggio
in degnità d’ere’
sed a vertute non ha gentil core,
com’aigua porta raggio
e ‘l ciel riten le stelle e lo splendore.
Splende 'n la 'ntelligenzïa del cielo
Deo crïator più che 'n nostr'occhi 'l sole:
ella intende suo fattor oltra 'l cielo,
e 'l ciel volgiando, a Lui obedir tole;
e con' segue, al primero,
del giusto Deo beato compimento,
così dar dovria, al vero,
la bella donna, poi che 'n gli occhi splende
del suo gentil, talento
che mai di lei obedir non si disprende.
Donna, Deo mi dirà: “Che presomisti?”,
sïando l'alma mia a lui davanti.
“Lo ciel passasti e 'nfin a Me venisti
e desti in vano amor Me per semblanti:
ch'a Me conven le laude
e a la reina del regname degno,
per cui cessa onne fraude.”
Dir Li porò: “Tenne d'angel sembianza
che fosse del Tuo regno;
non me fu fallo, s'in lei posi amanza”.
Guido Guinizelli (1235-1276). Rime, Milano: Einaudi, 2002.
"Tu, que mudaste a maneira da escrita", tradução de Simão Valente
Tu, que mudaste a maneira da escrita
das lacrimosas declarações de amor
da forma de ser que era prescrita,
para ultrapassar qualquer trovador,
Fizeste tu como faz a candeia,
que à escuridão traz o esplendor,
mas não aqui onde o sol permeia
e tudo perpassa do maior fulgor.
Assim, tão subtil é a tua trapaça
que não há quem exponha
o sentido de fala tão obscura.
Que o entendimento descompassa,
ainda que venha de Bolonha,
escrever versos com escritura.
"Voi, ch’avete mutata la mainera", Bonagiunta Orbicciani
Voi, ch’avete mutata la mainera
de li plagenti ditti de l’amore
de la forma dell’esser là dov’era,
per avansare ogn’altro trovatore,
avete fatto como la lumera,
ch’a le scure partite dà sprendore,
ma non quine ove luce l’alta spera,
la quale avansa e passa di chiarore.
Così passate voi di sottigliansa,
e non si può trovar chi ben ispogna,
cotant’ è iscura vostra parlatura.
Ed è tenuta gran dissimigliansa,
ancor che ’l senno vegna da Bologna,
traier canson per forsa di scrittura.
Bonagiunta Orbicciani (1220-1290). Poeti del Duecento, ed. Gianfranco Contini, Milano-Napoli: Ricciardi, 1960.
"Omo ch'è saggio non corre leggero", Guido Guinizelli
Omo ch'è saggio non corre leggero,
ma a passo grada sì com' vol misura:
quand'ha pensato, riten su' pensero
infin a tanto che 'l ver l’asigura.
Foll'è chi crede sol veder lo vero
e non pensare che altri i pogna cura:
non se dev'omo tener troppo altero,
ma dé guardar so stato e sua natura.
Volan ausel' per air di straine guise
ed han diversi loro operamenti,
né tutti d'un volar né d'un ardire.
Dëo natura e 'l mondo in grado mise,
e fe' despari senni e intendimenti:
perzò ciò ch'omo pensa non dé dire.
Guido Guinizelli (1235-1276). Rime, Milano: Einaudi, 2002.
"Homem que é sábio é também lento", tradução de Simão Valente
Homem que é sábio é também lento
a agir: mede os passos com gravidade.
Guarda ao pensar seu pensamento
Se não o experimentou a realidade.
Louco é quem se crê único e atento
e que outros não busquem a verdade:
Olhe bem a sua natureza e talento,
e não peque o homem por vaidade.
Voam pássaros diferentes pelo ar,
todos são de diversos movimentos:
não são um só seus vôos e anseios.
Natureza e mundo: Deus usou, ao criar,
de graus, e díspares os entendimentos
fez. Não dite o homem juízos alheios.
Simão Valente é professor na Faculdade de Letras. Traduzir sonetos é o seu sudoku. Gosta de policiais dos anos 20.