Quimioterapia, Harkaitz Cano
Nuno Amado
Quimioterapia, Harkaitz Cano
Hay sólo una cosa que deprima más
que los hospitales;
no son los cementerios.
Me refiero a los autobuses de línea regular llenos de gente
que acude a los hospitales.
Esa gente, con su radiografía bajo el brazo
en un sobre, la mirada perdida
en un oscuro pozo
que ni tú ni yo podemos llegar a vislumbrar.
Emociona la sonrisa de dientes acunados
del niño de seis años rapado al uno.
Ancianos que acercan sus placas a la luz de las ventanas
y proclaman con alborozo:
– Mira, es ese punto blanco de ahí;
y sobre todo esas dos mujeres que conversan con las manos
y al hablar, es como si abriesen un cofre en cada frase:
– Ya verás, le digo a mi marido,
ya verás qué paseos vamos a dar tú y yo
cuando nos traigan
la silla de ruedas.
Nos van a llamar
El Coyote y Correcaminos, Ismael.
El Coyote y Correcaminos.
Un estremecimiento recorre mi cuerpo
y aquella mujer llena de coraje añade que a Ismael
la parálisis se la ha extendido, no me acuerdo,
si a la mano izquierda o a la derecha.
Cada cual acarrea
su radiografía bajo el brazo.
Su cuota de cáncer, su abandono,
su ojo de cristal o su guante ortopédico.
Que nos aspen si eso no nos remueve algo dentro.
Podemos imaginarlo aún, Ismael:
quizás le quede poco, y lo sabe,
Ismael juega al ajedrez sobre la manta escocesa
que cubre sus rodillas fósiles.
Ismael mueve las piezas con la mano que le resta,
y ora suspira, ora sonríe,
alguna vez hasta lo vence en la partida la mano inmóvil;
aún persona Ismael,
animado aunque no dibujo Ismael,
desanimado a ratos,
no es un epitafio pero podría serlo:
– Correcaminos y Coyote, rezad cuanto sepáis,
veréis quién manda aquí
cuando nos traigan
la silla de ruedas.
Quimioterapia, tradução de Teresa Jorge Ferreira
Só há uma coisa mais deprimente
do que os hospitais;
não são os cemitérios.
Refiro-me aos autocarros de carreira cheios de gente
que acorre aos hospitais.
Essa gente, com a sua radiografia debaixo do braço
num envelope, o olhar perdido
num poço escuro
que nem eu nem tu podemos chegar a vislumbrar.
Emociona o sorriso de dentes de leite
do menino de seis anos rapado com máquina um.
Idosos que aproximam as suas chapas à luz das janelas
e proclamam com entusiasmo:
– Olha, é esse ponto branco aí;
e sobretudo essas duas mulheres que conversam com as mãos
e ao falar é como se abrissem um cofre em cada frase:
– Vais ver, digo ao meu marido,
vais ver os passeios que vamos dar eu e tu
quando nos trouxerem
a cadeira de rodas.
Vão chamar-nos
O Coiote e o Bip Bip, Ismael.
O Coiote e o Bip Bip.
Um estremecimento percorre o meu corpo
e aquela mulher cheia de coragem acrescenta que a Ismael
a paralisia se estendeu não me lembro
se à mão esquerda se à direita.
Cada um carrega
a sua radiografia debaixo do braço.
O seu quinhão de cancro, o seu abandono,
o seu olho de vidro ou a sua luva ortopédica.
Que nos castiguem se isso não nos mexer por dentro.
Podemos imaginá-lo ainda, Ismael;
talvez lhe falte pouco, e o saiba,
Ismael joga xadrez sobre a manta escocesa
que cobre os seus joelhos fossilizados.
Ismael move as peças com a mão que lhe resta,
e ora suspira ora sorri,
uma vez por outra até o vence na partida a mão imóvel;
ainda pessoa Ismael,
animado ainda que não desenho Ismael,
desanimado às vezes,
não é um epitáfio, mas poderia ser:
– Bip Bip e Coiote, rezem quanto souberem,
vão ver quem manda aqui
quando nos trouxerem
a cadeira de rodas.
Harkaitz Cano, Alguien Anda en la Escalera de Incendios. Almería: El Gaviero Ediciones, 2008. [Versão em espanhol de «Kimioterapia», Norbait dabil sute-eskaileran, 2001.]
Teresa Jorge Ferreira é investigadora no IELT – Instituto de Estudos de Literatura e Tradição da NOVA FCSH e doutorada em Estudos Portugueses – Estudos de Literatura. Volta sempre à poesia porque gosta de atividades radicais.