Monólogo de Zimmer, tradução de Manuel Alberto Valente
- Não é, apesar de tudo, um hóspede incómodo.
Apenas uma criança grande. As crianças, já se sabe,
dão por vezes, como ele, desgostos e maçadas.
Mas se está tranquilo é agradável:
conversa, improvisa versos, torna-se loquaz,
ou desfruta da natureza, sorridente.
Quando está bom tempo acompanha-me à horta
ou à vinha e, enquanto trabalho, colhe flores
que logo esquece. O sol fá-lo feliz
e abandona-se ao seu calor, sobre a erva,
e vence esse frio que o aperta por dentro.
É um homem tranquilo se o deixam em paz,
mas os miúdos por vezes aborrecem-no
e volta para casa de mau génio, e ninguém sossega:
passeia pelo quarto como fera enjaulada
ou dá-nos cabo do juízo com o piano,
martelando sempre as mesmas teclas.
Acontece-lhe, sobretudo com mau tempo,
com o frio, a chuva, o céu cinzento,
estar dias e dias sem sair do sótão,
sem cortar unhas nem cabelo, nem a barba,
sem se lavar,
encostado aos vidros com olhos ausentes,
perdidos no Neckar,
batendo os pés no chão horas e horas.
Mas para quê insistir neste tipo de coisas:
todos nós temos dias maus.
Regra geral, porta-se bem. E faz-me companhia.
Além disso, é fantástico
a gente que conhece. De outros tempos.
Às vezes visitam-no – não muito, é verdade –
e passam por minha casa uns cavalheiros, ou escritores famosos,
ou interessantíssimas senhoras
que o contemplam com respeito
e lhe pedem poemas dedicados.
Eu ofereço-lhes vinho, ou água fresca,
ou fruta, quando é Verão,
e eles falam-me dele, de quão importante
podia ter sido, do seu talento
estranhamente desperdiçado, da sua beleza
e da dos seus versos.
Eu conto-lhes as diabruras que me faz
e alegram-se ou ficam tristes, depende,
e ao despedirem-se deixam algumas moedas
para lhe comprar doces, de que tanto gosta.
Quando partem, a sua cara muda
e fica a pensar, ensimesmado,
e está assim vários dias, dando-lhe voltas,
ruminando, e é então
que o observo sem que dê conta
e penso de novo: não está louco,
apenas faz o que quer,
livre, em paz.
De repente, uma coisa qualquer,
um pardal, um melro, uma insignificância,
leva-o de volta ao seu olhar de criança grande,
e sorri de novo, quem sabe a que fantasmas,
e a mim desconcerta-me, porque o vejo perdido
e sinto-me como ele.
Dela nunca fala. Se a nomeiam
na sua presença ou lhe perguntam
por aquela senhora,
finge não se recordar, ou responde-lhes
que lhe deu nove filhos,
todos de altos destinos: papa, rei…
Depois, sozinho, quando ninguém o vê,
sobe à sua torre e chora. Já o ouvi
através da porta. E partiu-se-me a alma.
Enfim, senhores, parece-me que agora
já falei demasiado
e estou a cansar-vos.
Como lhes disse, não é um hóspede incómodo
e sinto-me orgulhoso de o ter nesta casa
de humilde carpinteiro.
Voltem pois quando quiserem,
ele foi correctíssimo convosco
e não se aborreceu com a visita.
Tive muito prazer em conhecê-los.
Adeus, senhores.
Zimmer.
Um vosso criado.