Poema do Gato
Maria S. Mendes
Poema do gato
Quem há-de abrir a porta ao gato
quando eu morrer?
Sempre que pode
foge prá rua,
cheira o passeio
e volta para trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.
Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.
Quando abro a porta corre para mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semi-cerrados, em êxtase,
ronronando.
Repito a festa,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas,
e rosna,
rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.
Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?
António Gedeão, "Poema do Gato", Poesia Completa. Lisboa: Sá da Costa, 1996.
Este poema não devia ter sido esquecido por quem se tenha, efectivamente, esquecido dele, porque haver quem não o tenha esquecido indica que vale a pena lê-lo, ou melhor, valeria a pena lê-lo, se lê-lo fosse uma pena.
Ora, ler este poema não custa nada, porque o tom é desde logo coloquial e invocativo, implicando o leitor nesse misto de pergunta retórica e pedido de ajuda que, se não é vulgar, é totalmente compreensível ("Quem há-de abrir a porta ao gato / quando eu morrer?"). A linguagem é simples, directa, fazendo lembrar as conversas entre donos de animais sobre as respectivas idiossincrasias ("Sempre que pode / foge prá rua, / cheira o passeio / e volta para trás"…), embora se comece a perceber, a certa altura, que o fulcro do poema talvez não seja a preocupação do dono com a felicidade do gato.
Quando se insinua um meigo sadismo ("Deixo-o sofrer / que o sofrimento tem sua paga, / e ele bem sabe"), que, na estrofe seguinte, dá lugar ao deleite sensual, a partir do momento em que o gato se apressa a regressar para junto do dono "como acorre a mulher aos braços do amante", é natural que se comece a pensar que aqueles "bigodes eróticos" talvez representem algo mais do que um mero animal de estimação, até porque não será propriamente frequente que um gato abrace o dono e adormeça em seguida, depois de ter rosnado, "deliquescente". E eis que surge a inusitada e provocatória declaração final ("Eu não tenho gato"), que varre abruptamente todas as imagens que nos ocorreram desse dono enternecido com um gato que afinal não existia. Se aqui não há gato, mas há dono, o que pensar de tantas palavras ternamente dedicadas a animal nenhum? Quem será, então, esse ser que precisa de liberdade, mas afinal não a quer, que se deleita voluptuosamente com as carícias de quem o possui, que fica "de olhos semi-cerrados, em êxtase", "abre as narinas" e chega a rosnar de prazer?
É possível que alguns leitores interpretem este texto como a expressão de um desejo de ter um gato de tal forma agudo que resulta nesta proeza: uma descrição de acuidade arrepiante das reacções felinas às festas humanas. Outros talvez se perguntem: teria o fulano uma amante da qual queria que alguém cuidasse, quando ele partisse deste mundo?
Se fosse um poema de agora, eu diria que gosto deste poema não apenas por ser um elogio à sensualidade per se, mas também porque não fornece resposta para essa pergunta. Dado que é um poema de antes, tenho de me concentrar na fórmula expressa inicialmente. Este poema não deve ser esquecido pelas pessoas que gostam de gatos, nem pelas pessoas que detestam gatos, porque nos recorda de que podemos ver nos gatos outras coisas, e de que podemos ver gatos noutras coisas.
Sara de Almeida Leite
Sara de Almeida Leite é docente do ISEC Lisboa e fez toda a sua formação superior na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde se estreou como professora de Literatura Portuguesa em 1995. É autora de vários livros sobre o bom uso da língua portuguesa, bem como de artigos científicos sobre boas práticas no ensino da língua e da literatura. Também trabalha, ocasionalmente, como tradutora e ilustradora e acaba de publicar uma colecção de livros de ficção juvenil. Escreveu vários poemas a partir dos 18 anos, mas só publicou a sua poesia recentemente e não se arrepende de o ter feito.