Inéditos
Agora que morre
Maria S. Mendes
Agora que morre,
todos os discursos acerca do meu corpo
o desprendem
como cordas pousadas
à superfície do rio
Read MoreEaster, 2016
Maria S. Mendes
I came back, hat in hand, and your smile briefly
Turned me into Spencer Tracy in Adam’s Rib.
Read MoreVários, Rosa Oliveira
Maria S. Mendes
interessava-se por figuras outrora importantes
obscurecidas pelo tempo
como Lorenzo da Ponte professor de literatura
judeu convertido ao catolicismo padre dissoluto acusado de concubinato público expulso durante quinze anos da veneza poluente
Read MoreVários
Maria S. Mendes
tsunami reflux
é o nome que vou dar
a esse fenomenal fenómeno
de ser nós que vamos dar ao mar
em vez de ser ele quem nos vem afogar
Read MoreNA LÓGICA DO CAPITAL
Maria S. Mendes
Na lógica
do capital
é-se
o que se vale
(…)
Read MoreO gato não
Maria S. Mendes
O gato não
tem muita
paciência
mas gosta
de brincar
com a bola
Read MoreFormigas / ou / A morte explicada às criancinhas
Maria S. Mendes
Formigas
ou
A morte explicada às criancinhas
1
Vê-se primeiro uma só formiga.
Parece perdida, enleada nas ervas,
movendo-se indecisa atrás e adiante,
sem saber muito bem que direcção tomar.
Lembra um turista que não sabe
em que país se encontra
nem entende a língua que ali se fala,
e procura orientar-se consultando um guia hostil
num lugar hostil.
Read MoreCaddy
Maria S. Mendes
Caddy
Pensei imaginar-te outra vez nua entre
coisas brancas panos nuvens ovelhas e
camarinhas frutos pequeninos que os teus
dentes brancos ligeiramente inclinados
para a frente para um beijo para mim
trincam e tu tapas a boca com a mão
e cospes caroços desenhas nos lábios
um sorriso de vestal apanhada pelo sol
Read MoreCANNES, HÔTEL LE PAVILLON DE MADRID
Maria S. Mendes
CANNES, HÔTEL LE PAVILLON DE MADRID
(com a voz de Klaus Mann)
sobre a noite antiga e amarrotada
o ferro das horas passaja e nem por isso
alisa o que nela são vincos fundos (...)
Read MoreSofrósina
Maria S. Mendes
Sofrósina
Olha: conseguimos!
Entre minérios vulgares
e berilo jadeite musgravite
diria estarmos perante um perfeito nove.
Uma moldura ficaria bem aqui
nesta relação finalmente estabilizada.
O caranguejo diagonou como um bispo
enquanto testava a minha força
numa máquina Gottlieb
e pagava outra rodada
à rapaziada sedenta
e a gasosa corria de grandes desfiladeiros
caindo entre anéis de profundos dedos
sob soturnos olhares
despedaçados sobre as pedras
como algas cadentes
quando a benitoíte se inflama sob a luz negra
e o estroboscópio obtura a pista
pelo último recluso.
Depois o cabedal da noite
como canga sobre a ganga
quando o seu braço encontraria o seu cachaço
e os dois rumavam à eternidade
num silêncio de olheiras
ainda zoando a cromados
e a pontes encavalitadas sobre
baixos rios.
E depois ainda o grande mundo:
raios de cobalto no capote da noite
quando Trastevere era uma boémia
ou Aldous um nome para Oxford
não fosse o tempo chegado
e tivéssemos de arranjar uma solução
em cima dos joelhos
para a torção de sobriedade,
para o dealbar da ordem de serviço
quando estudantes passavam a técnicos
e baladas a despertadores.
Aqui agora nesta intenção de tempo
entre a beleza do ponto sem retorno
e a lúrida manhã
estalamos gengivas,
acordamos a espantada
húbris: os gregos saberão usá-la
com moderação.
Daniel Jonas
Daniel Jonas nasceu no Porto, em 1973. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas (Faculdade de Letras da Universidade do Porto) e é mestre em Teoria da Literatura (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa). Publicou os livros de poesia Os Fantasmas Inquilinos (2005), Sonótono (2007), Passageiro Frequente (2013), Nó (2014, Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes), Bisonte (2016) e Oblívio (2017), e também a peça de teatro Nenhures (2008). Recebeu o Prémio Europa - David Mourão-Ferreira pelo conjunto da sua obra. Escreveu Estocolmo, Reféns e o libreto Still Frank, todos encenados pelo Teatro Bruto. Traduziu, entre outros, Shakespeare, Waugh, Pirandello, Berryman, Dickens, Huysmans e Wordsworth, e também o Paraíso Perdido, de Milton. Ler aqui.
Esta mulher dormindo
Maria S. Mendes
Esta mulher dormindo
Mais um dia que se ajoelhou de faca na boca.
Esta mulher em máximo equilíbrio, sorrindo como uma estátua.
Esta mulher feita de carne e sono, embrulhando os filhos por estrear
Falhou em tudo e ri-se, de carvão a cercar o estômago
As narinas muito abertas à procura do ar.
As pernas tranquilas para o outro lado do corpo
Uma dor de furar cidades numa cara adolescente, estreita,
entre dois olhos
É mesmo ela, sem dúvida,
esta mulher de diversão para qualquer dia
um gesto desajeitado para qualquer ombro
o maior esquecimento da família, até aos domingos
E volta a cara para outro lado, de preferência à procura da luz
Mulher nua, no quarto, desistindo da sua lírica,
Olhando o tecto
Mulher encolhida na própria sina, encontro fatal
Os olhos comem
O corpo alcança
A mulher ergue-se no túmulo de outra vida
Desaprendendo de ser gente
Mulher de bater à porta em dias invisíveis
Calada, encostada à condição do seu lixo
Remexendo nele com línguas nos seios
Não lhe resta nenhuma casa, declarou a guerra perdida
Mas há-de vir uma desculpa que lhe baste para o nojo de estar
desperta
e o cheiro contínuo a orfandade
Mulher toda, cavalo elegante, praia
a vida é pouco mais que a humidade daquele quarto,
morte lenta por silêncio,
e um resto de nada
um resto de nada
Cláudia R. Sampaio
Cláudia R. Sampaio é poetisa, mas não só. Em 2014 publicou o seu primeiro livro de poesia, Os Dias da Corja (Do Lado Esquerdo), seguindo-se A Primeira Urina da Manhã (Douda Correria), Ver no Escuro (Tinta da China) e 1025mg (Douda Correria). Desde então, tem colaborado em várias revistas e antologias de poesia. Vive em Lisboa com as suas duas gatas.
[A irresponsável pergunta]
Maria S. Mendes
[A irresponsável pergunta]
Perguntar “o que é a relva?”
perguntar o que aponta longe
onde nem o verde
nem o azedo da selva
aprovariam o costume de perguntar
o que é denso
o que se espalha
o que cresce em abundância
em fios de cabelo verde atónitos
que jamais aprovariam
o costume de afastar
o objeto de seu sujeito esverdeado
pela pergunta
a irresponsável pergunta sobre o que é a natureza.
Rita Natálio, Plantas Humanas.
Rita Natálio é artista e pesquisadora. Vive entre Lisboa e São Paulo. Publicou o seu primeiro livro de poesia Artesanato, pela não edições em 2015, pelo qual foi nomeada para o prémio Novos em 2016. Em 2017, publicou Plantas Humanas, também pela não edições. Faz ainda o projecto Antropocenas, com o coreógrafo João dos Santos Martins.
Porém nos transportes
Maria S. Mendes
Porém nos transportes
temos lugares
imaginados
somos publicamente
levados no inverno
de A a B tendo atirado
para longe
para o chão
um cigarro
idêntico ao anterior
mas acrescente-se
nunca é coisa vagarosa
um cigarro aliás
só finjo que percebo
o advérbio vagarosamente
treme tudo nos mundos possíveis
mas voltando atrás
estávamos na paragem
com o tal cigarro
idêntico ao anterior
excepto na maneira de morrer
passa-se a língua pelos lábios
para chegar ao fim
fechar a conta
a um pedaço de tempo
mas estou em dívida
o meu corpo não se esquece
de me lembrar
não administro bem os hábitos
quanto mais
as regulares tristezas
quando pegam fogo
em fundo
raízes por fora
viradas para cima
a pedir luz
como também pede o corpo
não se esquece
mesmo na sombra
há extraordinariamente cores
a pedir luz
no meio
do negativo
os cigarros
serão lâmpadas
sóis
servem
por agora
depois é preciso mais
mais maneiras
de não sermos
livres frutos desimpedidos
tanta sombra
a minha fototaxia fode-me
mas dizia eu
nos transportes
teremos locais imaginados
palavras polaroids
muito escuras
quem não as tem
na esperança de morrer menos
reservar algumas estações
românticas como termómetros
quando o mercúrio deixou
de ligar à sua vocação
de Sísifo
dos pequenos intervalos numéricos
deixou-se ficar ali
ou escapou
para ir morrer longe
ou perder-se da memória
ou nela
não há diferença
já somos restos
se fugirmos a todas as dívidas
fica o quê
o autocarro não chega
e o sol põe-se
Miguel Cardoso
Miguel Cardoso vive em Lisboa. Ensina, traduz. Escreve em longos problemas respiratórios. À noite lê Albas e Ruy Belo. A poesia é para esperar por manhãs seguintes. Às terças e sábados levanta-se. Vai à Feira da Ladra. Ler também aqui.
Adio a hora de me deitar e já hibernas
Maria S. Mendes
Adio a hora de me deitar e já hibernas
antecipo o tempo de moldares ao meu ventre os teus joelhos
assentares nas minhas coxas os teus pequenos pés cálidos
pousares-me nas faces as tuas mãos pintadas pela Josefa Ayala
expirares sobre a minha boca o teu hálito sem molares
suspirar-te a adoração que te tenho
sorver-te o odor essencial do paraíso palpável da nuca,
umbigo universal de tudo.
Prolongo a saudade para aumentá-la
num arranque acorrentado para a alvorada.
Penso:
o teu pai sofre mais porque nem o gato ronrona quando não estás.
Lembro-me então de que não tenho gatos
e enfrento a repulsa ao sono que nos repara separadas
em terras com geografia elástica
deitadas sobre o mesmo lençol.
Acordo com o teu corpo em febre ao meu lado.
Sinto-me uma aprendiza de bruxa
a pegar fogo às labaredas na tentativa de extingui-las
enquanto inundo o quarto num afã de recém-dona de casa.
Acordas.
Ofereço-te goles de água,
pergunto-te “Queres abraçar-me?”,
respondes “Não posso tocar em nada
que esteja quente”. Escapa-se-me
o riso clandestino da madrugada.
Encaracolas-te ao meu braço
na proporção de um bonobo numa aroeira
como quando me enrolava à minha mãe
- só não sou grisalha.
Gostaria de morrer como as oliveiras
que apenas enrugam,
albergar-te sempre.
Tu deitada na sombra argêntea, protegida da canícula.
Tu deitada na sombra argêntea, abrigada da lua fria.
Tu a jogar à macaca com piões a rodopiar por ti acima.
Tu grávida, cuidando de todas as coisas vivas
a brotarem dos teus calcanhares e pulsos,
a tua boca a babar hera como a Primavera renascentista
vestida de cravos rosas centáureas
pés de seda pisando um impossível musgo
inconsciente de seres deusa como só uma.
Catarina Santiago Costa
Catarina Santiago Costa nasceu em Lisboa, em 1975. Frequentou o curso de Comunicação Social na Universidade da Beira Interior (Covilhã) e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa (Lisboa). Ambos os seus livros, Estufa (2015) e Tártaro (2016), foram publicados pela editora Douda Correria. Participou em edições da Enfermaria 6, Diversos Afins (Brasil), Flanzine e Tlön. A poesia é a lente através da qual vê tudo.
nunca ninguém: tem
Maria S. Mendes
nunca ninguém: tem
educação na infância:
uma nuvem não vem
com tradução: tempo
espaçado de frase feita
em branco: entretanto
em palavras-turquesa
céus amplos: digitinta
não cabe: impossível
meteorologia alguma
sobram fachadas: vizinhas
conversas vazias do bairro
de nada de pedra esfarelada:
tanto transparecem na tarde
alguma falta de interior
pose de ruína
despreocupada:
como caem os muros
às mãos do homem
demolidor:
telhados abrem
nossa falência
e sobram fechadas:
portadas honestas
uma osga
cimento
sem companhia
Ricardo Tiago Moura
Ricardo Tiago Moura nasceu em Coimbra, Junho de 1978. Publicou os livros Um gato para dois (Hariemuj, 2013), Epístolas a D. (não edições, 2013), 1 gato para 2 (não edições, 2015) e pequena indústria (Tea for One, 2016). Publicou também o livro-objecto Controlo de qualidade (ed. de autor, 2017). O seu livro Espaço aéreo (Arqueria, 2014) foi publicado no Brasil, mais tarde traduzido para Espanhol e Inglês e publicado no Peru (Amotape Libros, 2015) e Reino Unido (Carnaval Press, 2017). Tem publicado dispersamente poemas em revistas e antologias. Dedica-se também à colagem. Vive em Køge, Dinamarca.
Trailer
Maria S. Mendes
TRAILER
o filme começa com um happy begin
será um flash-back o que se passa em mim?
e depois o tempo presente não sei se volta
cama grande ou divã?
acordar a dois
e nasce uma estrela
o primeiro adeus
a primeira clínica
a segunda clínica
shrinks, screens e boeings
de cá para lá
de lá para cá
sem passar por ti
un homme et une femme
bádábádábá
um casamento em paris, texas
a valentine nem queria acreditar
e tinha cárrádásss de raison
só nos ficaram as mil luzes de manhattan
dream a little dream of me
como era mesmo? aquele primeiro sonho
ah já me lembro
“eu sou uma flor que não envelhece”
e eu beijava-te
o primeiro beijo
FINE DEL PRIMO TEMPO
(saudade de viagens em itália
de filmes com intervalo
para fumar um cigarrinho)
SECONDO TEMPO
o primeiro restaurante
o primeiro disco
o primeiro gravador de chamadas
o primeiro emprego
é isto o cinema?
a bofetada de hiroshima
e se fôssemos ao egipto?
(tenho saudades da juleen compton)
lua cheia no yucatán
ela só dançou um verão
eu só bebo périer
le génie ou alors rien
não podemos viver juntos
nem separados
terna é a noite
dois apartamentos não nos bastam
é só uma lua de papel
the last moon of yucatan
the lost moon of yucatan
mas se acreditares em mim
este filme não acaba
toda a gente diz que te amo
à bâtons rompus
on parle on parle
falamos sem parar
mas não é só o que sabemos fazer
será que tudo não é senão uma colagem?
tu parles!
will you still love me when I’m eighty-four?
a última clínica
a última tarte aux myrtilles
- Lembras-te daquele filme?
- Qual?
(1.7.17)
Ramiro S. Osório
Formatei-me muito mais do que queria
Maria S. Mendes
Formatei-me muito mais do que queria
julguei resistir mas o crânio cedia
como uma bola de borracha ao sol.
Percebi isso ontem
no reflexo de uma janela:
a minha cabeça estava quase igual às outras todas.
Não, não sinto um grama
de poesia em todo o corpo,
e pesam-me as inevitabilidades mesquinhas.
O prazo do ketchup expirou há pouco
e todos me vão recriminar,
já sei, por eu não
reparar nesses números tão pequenos
que apesar do esforço me escapam
e fogem num resquício de distração distraída.
Estranha, a evolução da vida.
Há que continuar a olhar
a lata, o frasco, a casa.
Toda a mercearia me engoliu há muito.
E são e estão, tanto que não saberia.
Os filhos matam. Maridos também. Famílias assassinas a matar mulheres todos os dias.
Poesia não, mercearia.
Leonor Sá
Leonor Sá é conservadora de museu e mentora de projetos de proteção do património cultural. Doutorada em Estudos de Cultura pela Universidade Católica Portuguesa, com uma tese sobre os primórdios da fotografia judiciária, fez em tempos um mestrado cuja dissertação incidia sobre Kafka e a Utopia. Resultado: teve um percurso profissional kafkiano, mas nunca deixou a utopia - nem a poesia (senão morria).