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Poemas de agora

Filtering by Category: Poemas de agora

Palavras caras

Maria S. Mendes

 

Palavras Caras

 

Em minha casa, detestávamos pessoas bem-

-falantes, palavras caras. De uma vez, apareceu a

prima Maria Lucília a dizer já não sei porquê:

            – Fiquei muito confrangida.

Passámos a chamar-lhe “a confrangida”.

Sempre que aparecia alguém na televisão a

declamar poesia ou a falar de poesia, desligáva-

mos a televisão.

 

Adília Lopes, “Palavras Caras”, Manhã. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015. 

© Adília Lopes e Assírio & Alvim / Grupo Porto Editora.

Aqui publicado com autorização da autora e da editora. 

 

Gosto deste poema porque, em primeiro lugar, me obriga a enfrentar dúvidas linguísticas e a ir ao dicionário averiguar a diferença entre “confrangido” e “constrangido”, lembrando-me do confrangimento por que passo quando hesito na sua utilização. Para evitar o constrangimento da hesitação de não saber qual a palavra mais apropriada à circunstância, prefiro dizer, ao contrário da prima do poema, que “fiquei aflita ou angustiada”.

Em segundo lugar, gosto deste poema porque, à semelhança da poetisa e da sua família, tenho aversão profunda ao emprego a despropósito de palavras caras, sobretudo quando isso significa tentativa de exercer sobre os outros algum tipo de superioridade intelectual. No poema, a família da poetisa, na qual esta também se inclui, como se torna claro pela utilização da primeira pessoa do plural (“detestávamos”), não gosta de pessoas bem-falantes nem de palavras caras. As pessoas bem-falantes parecem ser aquelas que utilizam palavras caras, frequentemente de forma inapropriada. A repulsa não é tanto às palavras caras como às pessoas que simulam eloquência empregando termos mais caros, em vez de usar a linguagem de todos os dias. A prima Maria Lucília, nome composto, como aliás a palavra “bem-falante”, personifica a pretensa eloquência através do verso em discurso directo, que se destaca claramente do resto do poema: “– Fiquei muito confrangida”.

Um antepassado deste poema é a crónica “Fazer Prosa, Fazer Rosa”, de 2001, publicada no Público. Convoco-a para esta análise, já que nela podemos ler este mesmo poema com uma ordem inversa na apresentação das ideias. Adília começa por falar do facto de a família não gostar de poesia e desligar a televisão sempre que alguém recita poemas, para depois referir a dita aversão às palavras caras, configurada na figura de uma prima bem-falante: “Sempre que, na televisão, aparecia alguém a recitar um poema, tirava-se-lhe o som. […] Em minha casa, toda a gente tinha horror às palavras caras. A prima Maria Lucinda, quando veio cá tomar chá, disse já não sei a propósito de quê ‘fiquei muito confrangida’. A tia Paulina alcunhou-a logo de ‘a Confrangida’”.

Por último, talvez a razão mais forte para gostar deste poema seja o facto de fazer uma associação entre pessoas bem-falantes e um certo tipo de poesia, não aquele que Adília pratica neste poema. Na casa da poetisa, as pessoas bem-falantes, aquelas que declamam poesia ou que falam dela na televisão não merecem tempo de antena. O que levou a prima a ficar “confrangida” – e não saberemos nunca se a prima do poema e da crónica empregou ou não o termo com propriedade – é absolutamente irrelevante. O que interessa realmente é o sarcasmo do poema. Os três versos finais, cuja simplicidade (veja-se a repetição de palavras como “poesia” e “televisão”) está nos antípodas do estilo das pessoas bem-falantes, rejeitam a pomposidade que muitas vezes se pretende atribuir à poesia. Leio neles um programa poético despretensioso e uma tentativa de conferir à poesia uma noção de verdade. As palavras caras que são empregues por pessoas bem-falantes são por vezes forma de escamotear a verdade, e demasiada eloquência é inimiga da boa poesia. Por sua vez, declamar poesia é gesto sobranceiro, e, melhor do que recitar ou falar dela em jeito empertigado, é fazê-la dizendo a verdade. Este poema ilustra, pois, os princípios éticos e estéticos de Adília Lopes, que sintetizo numa versão truncada de uma frase da crónica já citada: fazer poesia é não dizer mentiras.

Joana Meirim


Joana Meirim é professora na Universidade Católica Portuguesa. Entre os 18 e os 19 anos escreveu vários poemas e publicou-os, hélas. Hoje não voltaria a fazê-lo. Gosta de poesia com humor, qualidade que aliás considera inerente a toda a boa poesia.

The Space of the Mandarin Duck

Maria S. Mendes

 

The Space of the Mandarin Duck

 

Apparently in Japan

One century and a half ago

The love-language of France

Was thought to be shocking.

 

So blatant, so presumptuous, so brutal                                 

Its violation of the atmosphere

Proper to every person.

 

I covet, they said in Japan,

The space of the mandarin duck,

There, at your side, beside you.                                   

 

The liminal duck took delight

Breezily as a go-between.

Tender obliquity saw it off.

 

A space with nothing there,

Dear old duck, even unaccompanied                          

And far, far away from others,

Still your space I covet.

 

Come the day when a volley of your quacks

Quells every twittering vandal of speech

And unspeaks the sweet-talker                                    

Whose voice curdles with money and hate.

 

Christopher Middleton, “The Space of the Mandarin Duck”Collected Later Poems. Carcanet: Manchester, 2014.

Reproduced with permission from Carcanet Press.

 

* Ler a tradução do poema aqui

Gosto da destreza com que este poema evolui de uma apreciação competente da delicadeza para uma denúncia enfaticamente grosseira, humoristicamente autoconsciente, mas plena de ameaças proféticas. Admiro que mantenha uma tensão entre um tom delicado e o seu contrário; uma tensão gerida de forma a manter a delicadeza intelectual intacta. O “soslaio terno” com que a primeira parte do poema evidentemente simpatiza, não chega a ser realmente usurpado pela indignação desdenhosa a que se eleva, no final. Tão-pouco fica esta indignação comprometida pelo humor ostensivamente singular que a acompanha. O “soslaio”, de um certo tipo, é um propósito do poema, além de ser o seu assunto.

Não confirmei a afirmação feita na terceira estrofe, i.e., de que uma frase semelhante ao que se diria em inglês “I covet the space of the mandarin duck beside you” [“Eu quero esse espaço do pato mandarim, ao teu lado”] seria de uso corrente, no Japão do século dezanove. Mas tanto na China como no Japão, parece que o pato mandarim, graças aos seus hábitos de acasalamento e companheirismo, era emblemático de constância e de devoção no amor. “The place of the mandarin duck” [“O lugar do pato mandarim”] poderia ser mais idiomático em inglês; mas “space” [“espaço”] conota mais fortemente “vazio” e essa conotação é significativa. Lembra-nos de que o pato é imaginário. Também implica uma vastidão na qual poderíamos viver e movimentar-nos.

Aparentemente, uma das sugestões do poema é esta: que a poesia em si mesma pode ser uma espécie de “soslaio terno”, terno talvez no modo como lida com a linguagem e, através da linguagem, com coisas, mesmo quando o tom não é terno. Apesar da sua ira teatral, este poema é, também ele, oblíquo. A sua obliquidade não se assemelha a opacidade, mas a uma espécie de subtileza enviesada. Aproxima-se do seu tópico derradeiro: a linguagem, incluindo a linguagem poética, de um estranho ângulo, do ponto de vista da autoconsciência; quase frívolo, apesar de, quando chegamos a “piado dos vândalos”, ficar claro que o argumento é sério. É necessária uma certa quantidade de ironia para temperar o ódio audível nos últimos versos, o desdém daquela “falinha mansa” que “engruma” com a voz, criando grumos como um creme mal feito. Deve mostrar-se que o ódio nobre do Poeta-Profeta que se conhece a si próprio se deve distinguir do ódio do vândalo. Porém, o argumento não fica enfraquecido…

Não é fácil articular a coerência do poema através de uma paráfrase. Tal coerência não condena a “língua amorosa” da França do século dezanove; não diz que é “chocante”, mas apenas que parecia sê-lo, no Japão. E duvido de que Middleton sentisse repulsa pelo modo como as personagens falam com quem amam em Zola ou em Balzac. Pelo contrário, a ideia de um idioma dos amantes é apresentada como uma analogia ou uma sinédoque para a linguagem como um todo; e o facto de que o poeta está a falar sobre uma disparidade intercultural que data de “há cento e cinquenta anos”, entre dois países, sendo-lhe ambos mais ou menos estranhos, ajuda a conferir à discussão um sentido de distância antropológica, ou relativismo. Reconhece-se implicitamente que o que confere choque ao do galanteio francófono é determinado por circunstância e perspectiva.

Se isto for verdade para um dos lados da analogia, é também verdade para o outro? Perto do fim, o poema já não lida com amantes com falinhas mansas; está interessado em “dinheiro e ódio”. O poeta que advoga “soslaio” cuidadoso (e o uso de uma linguagem que respeite a “atmosfera” e a dignidade dos indivíduos) pode parecer, aos olhos da maioria dos contemporâneos, quase tão exótico como o Japão do século dezanove parecia aos franceses do mesmo tempo. Então, o poema dele, devido à sua analogia elementar, parece estar pronto a admitir que a sua voz de protesto pertence a uma estranha minoria na cultura de hoje. Mas a sua convicção não fica enfraquecida por essa admissão. O relativismo oferece uma alusão de ironia, à medida que a convicção recusa ser mitigada. O pato que defendia o “soslaio terno”: um discurso cortesmente respeitoso e amoroso; uma linguagem antitética, como a poesia soará, ao “rude” e ao “brutal”; uma rejeição da grosseria. Permita-se que este pato imaginário se torne real e afogue com o seu grasno, o pseudo-discurso degradado, promotor do ódio e inclinado para o dinheiro das tretas políticas e comerciais. Permita-se que os nobres grasnos, numa “salva”, num ataque balístico, acabem com todos estes piados ignóbeis.

Até amanhecer o dia em que o pato venha para sufocar estes “vândalos”, o seu espaço fica vazio: um “espaço vazio sem nada”. Tal espaço não é sequer, necessariamente, um espaço ao lado de alguém; o poeta pode estar solitário, “sem ninguém”. O pato invisível já não é um meio para um fim, instrumental na obtenção de um propósito preconcebido como o galanteio ou a sedução teriam sido. É uma imagem não da escrita do poeta, mas para a escrita do poeta. O espaço do pato mandarim torna-se um espaço a ocupar, por estar ali; pelo “soslaio terno”, que está ligado a um respeito pelos outros (como versos anteriores nos informaram), ainda que estes estejam “longe, muito longe”; pelas pessoas em geral, mesmo que ainda não saibamos que queremos alguma coisa delas. É, acima de tudo, um espaço de oposição ao grasno das falinhas mansas especiosas e persuasivas.

Será que a irrealidade, ou antes, a idealidade da ave deslocada por cada visitante daquele espaço, por cada pessoa cuja atitude delicada perante a linguagem permite a substituição, invalida o processo?

Alex Wong


Alex Wong é Research Fellow em Literatura Inglesa em St John's College, Cambridge. O seu livro Poems without Irony foi publicado pela Carcanet Press.

Tradução Maria Rita Furtado 

There is nothing wrong with my sister

Maria S. Mendes

 

There is nothing wrong with my sister

 

After you told my sister

that there was no one else

but you no longer wanted her,

she went to bed and tried to work out

what she had done

and what was wrong with her

and spent the night awake.

 

There is nothing wrong with my sister

but may there be something wrong

with the Ikea wardrobe

she helped you to build,

so that tonight it falls apart

and wakes you

from your unaccompanied sleep.

Lorraine Mariner, “There is Nothing Wrong with my sister”, Furniture. London: Picador, 2009.

 

Gosto deste poema porque já desejei secretamente que a minha mobília do Ikea caísse em cima da pessoa que ficou com ela. Gosto deste poema porque nele se defende uma pessoa e se acusa outra, arquitectando-se uma forma de vingança a quem a merece, que fica para sempre inscrita nestes versos. E gosto deste poema porque expressa bem um certo tipo de poesia, na qual, nas palavras de Sianne Ngai, “Delightfulness offered by cuteness is violent”. Em Our Aesthetic Categories, Ngai relaciona o conceito de “cuteness” com alguma poesia moderna, de modo a mostrar como certos poemas usam características como “smalness, formal simplicity, softess or pliancy” (HUP, 2012, 64) para representar situações que não são “neither precious, small or safe” (70).

“There is nothing wrong with my sister” não é um poema difícil de ler, recusando abertamente a ideia de que a poesia deve ser entendida como uma adivinha ou como um texto que esconde uma mensagem apenas para ser compreendida por algumas pessoas. Nem poderia ser demasiado difícil, note-se, pois não sabemos quão bons são os talentos hermenêuticos do namorado da irmã. O poema é uma mensagem, à semelhança da nota sobre ameixas de William Carlos Williams em “This is Just to Say”.

A escolha de um roupeiro do Ikea – o símbolo de um tipo de mobília que não é pensada para durar – pode dizer algo sobre as relações do namorado da irmã, ao mesmo tempo que este é colocado na posição de duvidar se será seguro dormir ao pé do móvel, transformando-se este objecto em algo potencialmente perigoso. Note-se ainda como alguns dos versos descrevem a situação da irmã da poetisa, mas também as dificuldades de quem tenta montar algo do Ikea: “she went to bed tried to work out /what she had done / and what was wrong with her / and spent the night awake”. Expressões como “tried to work out” são associadas à ideia de que o problema não se encontra na mobília, mas sim em quem a tenta, sem sucesso, encaixar, abandonando a tarefa ao final de algumas horas e ficando a pensar em qual terá sido o passo errado na montagem. Se assim for, o título do poema, repetido na segunda quadra, pode ser ainda uma alusão aos problemas de montagem dos móveis do Ikea.

Lorraine Mariner usa a forma para dar um tom ao poema. Assim, apesar de as duas quadras partilharem, ao estilo de tanto mobiliário do Ikea, o tamanho, a mensagem bem-humorada torna-se ligeiramente mais agressiva quando o padrão rítmico dos primeiros versos é interrompido nos últimos versos de cada quadra, como se o poema estivesse a fazer duas coisas ao mesmo tempo: por um lado, a repetir o modelo da relação da irmã e de quem monta um móvel do Ikea, em que tudo começa bem, mas logo enfrenta dificuldades; por outro, a descrever de um modo ligeiro uma situação que se torna num aviso (cuidado com o guarda-roupa) e numa forma escrita de vingança (todos saberão o que fizeste à minha irmã). “There is nothing wrong with my sister” é, assim, um poema claro, ao contrário das instruções que acompanham cada móvel e dos sentimentos de dúvida que o namorado da irmã lhe deixou.

Maria Sequeira Mendes


Maria Sequeira Mendes é professora na FLUL e colabora com o Teatro Cão Solteiro.

 

o que dói primeiro

Maria S. Mendes

 

o que dói primeiro

 

todo urubu titia gritava
urubu urubu sua casa
tá pegando fogo

todo estrondo na rua
papai dizia eita porra
aposto qué bujão de gás

todo avião vovó acenava
é seu tio! desquentrou preronáutica
num tenho mais sossego

temi e ainda temo toda espécie
inflamável lamentei tanto urubu
desabrigado desejei o fim
da força aérea brasileira

só custei a entender mamãe
e o que queria dizer com seu irmão
não vem mais brincar com você
papai do céu levou.

 

Bruna Beber

 

Gosto deste poema porque é um relato engenhoso de uma experiência pessoal, um retrato preciso de uma experiência universal (a da constituição das primeiras crenças e perplexidades) e ainda uma reflexão sobre a durabilidade dessas crenças e dessas perplexidades. De certo modo, agrada-me porque me conforta quando digo “onteontem” em vez de “anteontem” e me explica por que é que tantos adultos são incapazes de mergulhar no mar antes de terem decorrido três horas desde a ingestão da última bola-de-berlim.

O poema mostra como o conhecimento que é veiculado às crianças por familiares tem uma resistência extraordinária à passagem do tempo, chegando mesmo a atropelar os factos e a lógica. É essa resistência que se aborda na quarta estrofe, onde a poetisa revela que ainda hoje teme “toda espécie de inflamável” devido ao seu pai lhe ter ateado, outrora, a ideia de que todos os estrondos são causados por explosões de botijas de gás. Esta ideia persiste, para lá de qualquer lógica que a refute, devido ao facto de a fonte ser o seu pai e não um tratado sobre fenómenos de combustão. Sugere-se, assim, que a formação e a duração de um certo tipo de conhecimento dependem sobretudo do tipo de relação existente entre a fonte e o destinatário envolvidos no processo de transmissão de conhecimento. Onde faltam factos, lógica, demonstrações e argumentos, sobram afectos que obliteram essas faltas.

Se não fosse tão marcado pela afectividade, este poema seria apenas uma descrição da ingenuidade característica da infância. Essa afectividade está explícita não só quando, por exemplo, se afirma o desejo de extinção da força aérea brasileira como expressão do desejo de apaziguar a avó, mas também, de forma mais interessante, na recuperação do vocabulário e da dicção de cada um dos familiares, desde a repetição encantatória da tia até à espontaneidade das interjeições paternas. Sublinha-se, assim, a existência de uma relação entre a resistência de certas ideias e a sonoridade com que as mesmas foram originariamente transmitidas, como se um determinado enlevo sonoro evitasse os embates da lógica e da cientificidade. Não é, aliás, por acaso, que o poema começa com uma referência a uma crendice popular oposta a qualquer tipo de lógica: a tia “alerta” os urubus para o incêndio, que, supostamente, está naquele momento a destruir as suas casas, com o intuito único de afastar o animal de perto de si, pois vê-o como um mau presságio (este “aviso” pode inclusive ser a repetição de uma fórmula tradicional que a “titia” ouvira na sua infância).

A isto junta-se uma mestria técnica no uso da repetição e da aliteração, característica das primeiras quatro estrofes, aquelas em que é invocada essa “memória sonora” que serve para as unir e, consequentemente, separar da última. Esta demarca-se estilisticamente porque narra a perpetuação de uma perplexidade e não de uma crença. Nela se mostra que parece não haver qualquer tipo de relação afectiva ou de enlevo sonoro capaz de conferir credibilidade às tentativas alheias de explicar a morte do irmão. Mesmo recorrendo a um eufemismo habitualmente usado para explicar a morte às crianças (“pápai do céu levou”), a mãe falha. A evidência esmagadora da ausência impõe-se a todo o amor e a toda a beleza presentes naquele esclarecimento. O amor e a poesia fazem-nos acreditar em muitas coisas, mas não em todas. Às vezes, é preciso sofrer para crer.

Jorge Almeida


Jorge Almeida é licenciado em Estudos Portugueses e doutorando no Programa em Teoria da Literatura (FLUL). Escreve crítica literária no Observador. Sabe de cor um poema de Cesário Verde e versos avulso de outros poetas, mesmo não se tendo esforçado para que isso acontecesse.

departures

Maria S. Mendes

 

:departures:

:departures:

No princípio era o ar.

Ricardo Tiago Moura, ":departures:", Airspace / Espaço Aéreo. London: Carnaval Press, 2017.

Aqui publicado com a autorização do autor e da editora. 

 

Uma das principais razões para eu gostar tanto deste poema de Ricardo Tiago Moura (com que começa o pequeno livro Espaço Aéreo, editado inicialmente no Brasil em 2014 e depois em 2017 em Londres, pela Carnaval Press, numa versão bilingue: inglês e português) é a sensação nítida de que vai ser muito difícil explicar em poucas palavras por que é que gosto tanto dele. E, ao mesmo tempo, porque é um poema que, sendo tão extremamente curto — seis palavras e três sinais de pontuação, no total, incluindo o título —, faz tudo menos impor a sua brevidade como uma lei, um programa, um ideal ou modelo de fala; pelo contrário, essa operação de abreviatura é como entreabrir uma porta que dá acesso a um espaço que parece infinito, onde cada um fica com a liberdade de falar o tempo que quiser e do jeito que entender, sem limites de espécie nenhuma e sem excluir nem depreciar a opção pelo silêncio.

Dizer que este poema prefere dizer pouco é, portanto, dizer muito pouco. O que “:departures:”, de facto, prefere é dizer quase nada. Um título que é uma vulgar tabuleta de aeroporto desviada para o espaço da poesia e uma frase que é uma variação mínima sobre a primeira asserção do versículo inicial do Evangelho de João (“No princípio era o verbo, […]”). Dois cortes, por assim dizer, bastam a Ricardo Tiago Moura para montar um poema. Entre o título e a frase, um intervalo branco bem menor que o restante espaço em branco que fica por debaixo da meia linha isolada que é a única “estrofe” do poema. Essa abundância de branco traz à evidência que não se trata aqui de contenção ou de austera poupança de meios: trata-se, antes, de luxo, o luxo supremamente irónico de recorrer à quantidade de vazio que a poesia achar que lhe é mais conveniente.

Esse luxo, como em toda a grande poesia, é uma afirmação de liberdade. Igual a outras que me fazem gostar tanto deste poema: a de usar mais que uma língua; a de manter ligação com a circunstância biográfica [“Airspace (Espaço Aéreo) is a collection of poems written in airports by the Portuguese poet Ricardo Tiago Moura”, regista a página on-line da Carnaval Press]; a de recorrer à pontuação segundo regras não convencionais (dois pontos antes e depois da palavra-título, à maneira das aspas, mas com um efeito totalmente diferente); a de corrigir um dos textos fundadores da cultura do Ocidente, sem lhe reproduzir a arrogância metafísica e logocêntrica. Acima de tudo, esta liberdade impressionante — para mim, que não sou poeta — de nunca admitir que já tudo foi escrito sem acrescentar, de imediato, que continua tudo por dizer, sobretudo o mais elementar, o mais simples, o mais óbvio.

Esse regresso ao princípio, agora do ponto de vista da aviação, abre um ponto de partida para destinos imprevisíveis. Com ele, acaba a época dos poetas viciados no cansaço da própria poesia.

Gustavo Rubim


Gustavo Rubim aprecia poetas opiómanos, infelizmente raros. Tornou-se professor de literatura (na Nova) por ser um leitor compulsivo, embora lento. É ainda mais lento a escrever e muito raramente os seus ensaios ultrapassam as quinze páginas. Fotografa íbis, rabirruivos, etc.

Songs of the unloved

Maria S. Mendes

 

Songs of the unloved.

Songs of the thrown away.

Of those buried without a name.

Of immured into the night.

Songs of the crossed out from the lists.

Songs of those made to kneel on ice.

The song of the wanted no more,

It goes on, it does not stop.

 

We are trained quite well –

To light fires from burning snakes;

To rip our hearts out,

So we can become angrier still.

To keep heads under the water,

So nobody can take a breath;

And to break off the blade after the blow,

Because “the God is with us”.

 

Step on the glass

If it is empty now;

Put your head into the loop,

Take your stuff and get out.

Lord, please tell me

The Secrets of Being;

Look me in the eye

And say that it’s Your will.

 

We could keep waiting for the sun,

Looking at the zenith with blind eyes;

We used to have a crystal bell

inside us,

Somebody stepped on it, and it does not chime any more.

This music is older than the world itself;

It is awkward and laugh-worthy;

But I will dance to it,

Even if we cannot hear it.

 

For a gentle soul –

An iron dress.

The words in blood on the sand –

“All people are brothers”.

I don’t need your Secrets of Being

any more.

Just look me in the eye

And say that it’s your Will.

 

Boris Grebenshchikov, Песни нелюбимых [Songs of the unloved], 2016. Aqui publicado com a autorização do autor e da editora.

 

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Gosto desta canção porque acho que mostra a Rússia como ela é na realidade e, no entanto, dá-nos esperança do que a Rússia pode vir a ser. Foi composta pelo cantor russo Boris Grebenshikov e é interpretada pela sua banda, os Akvarium. Os Akvarium começaram a tocar nos idos da Rússia soviética, quando a URSS dava os primeiros passos de um longo caminho para o colapso inevitável. Como outros membros do Leningrad Rock Club, eram rebeldes que nunca se entregavam à complacência nem deixavam de colocar perguntas desconfortáveis. Passaram várias décadas e ainda é isso que fazem através da sua música.

“Canções dos não amados” chamou a minha atenção numa tarde agradável do Verão passado, quando estava sentada numa convidativa sala de estar em Moscovo e conversava com uma amiga. Na verdade, falávamos sobre a negríssima situação do país — a economia a caminhar para pior, a ausência de oposição na política, o despotismo dos que estão no poder e a falta de resistência activa por parte do povo. “O protesto morreu e nós estamos condenadas”, disse a minha amiga. “Vamos mas é ouvir o bom velho Boris e pôr esta loucura de lado por um momento.” Ligou o Mac e a canção começou.

Para mim pessoalmente, que estudei em detalhe os protestos russos de 2011 e 2012, as primeiras palavras da canção convocaram imediatamente recordações dos manifestantes com quem tinha falado; pessoas belas, pessoas fortes, obstinadas e compreensivas ao mesmo tempo, pessoas com resiliência e que acreditavam num futuro melhor para o seu país. A canção dava um eco absoluto ao que aqueles que marcharam pelas ruas em 2011 e 1012 me tinham contado em entrevistas. Eram eles os “não amados”, “os que foram atirados fora”, os que tantas vezes tinham sido humilhados pelas suas crenças e acções. Mas eram também eles os que não pararam de marchar, os que não baixaram os braços mesmo quando parecia que a sua canção estava a morrer. Aposto que muitos deles ficariam tremendamente emocionados quando ouvissem esta canção.

Isto deve-se em parte ao facto de “Canções dos não amados” diagnosticar tão bem a sociedade russa — a sociedade que sofre de um caso constante de perturbação de stress pós-traumático, como disse um dos entrevistados. A canção fala da inquietude e da raiva do seu povo — “Nós temos uma boa escola - De receber lume de cobras em chamas;/De arrancar o nosso coração fora, para tornarmo-nos ainda mais maldosos.” — e da atitude característica de “tudo ou nada” que nos obriga a “pisar o copo, se ele foi bebido”. A canção condensa a realidade brutal da Rússia de hoje, onde a bondade não é recompensada (“Alma carinhosa – Vestido de ferro.”), onde as pessoas continuam desamparadas à espera de um futuro melhor que nunca chega (“Pode esperar-se pelo sol muito tempo, olhando cegamente para o zénite”) e onde o inconformismo é esmagado facilmente, como uma pesada bota militar que ao pisar um sininho lhe sufoca o repique. O protagonista da canção pede incessantemente ao Senhor que lhe responda, imitando o comportamento de muitos russos que ainda se viram para aqueles no poder à espera de obter respostas.

Desta forma, lembra-me a sociedade que recordo apenas através de histórias e livros — o estado soviético. Um país que também se escondia atrás de slogans gloriosos de igualdade, unidade e rectidão (fossem eles “Deus está connosco” ou “todos os povos são irmãos”) e, no entanto, cometia actos inomináveis ao seu povo. Neste país, os não amados eram efectivamente riscados das listas e enterrados sem nome. Neste país, de certo modo toda a gente era mantida debaixo de água, cada um no seu lindo aquariozinho e com escassas possibilidades de respirar com os pulmões plenamente cheios. É irónico, mas também estranhamente adequado, que, exactamente 100 anos depois da Revolução de Outubro, a Rússia se esteja a outra vez a assemelhar perigosamente a esse tipo de ditadura.

Mas a letra também sugere o enorme potencial de benevolência e bondade do povo russo, esse “sino de cristal” dentro de cada um que continua a soar, um sino que não pára mesmo depois de ser esmagado. Este sino dá esperança e mantém viva a vontade de continuar a dançar ao som da melodia aparentemente “ridícula e risível” da ética, da compaixão e da verdade. É significativo que, no final da canção, o protagonista se recuse a ouvir o Senhor e (digo eu) compreenda que não precisamos de alguém que nos diga o que fazer, e que o que fazemos não tem de obedecer à vontade de ninguém.

O estado soviético constituía a realidade do meu país ainda há escassas décadas, mas temo que dentro em breve se possa tornar na realidade da Rússia actual. No entanto, algures neste medo subsiste também uma grande esperança, a esperança que continuemos a dançar ao som da melodia das verdades, da bondade e da compaixão, mesmo se tantas vezes esta melodia pareça ter desaparecido. Porque é esta a única maneira que temos de escapar à realidade sombria que nos vem cativar numa agradável tarde de Verão.

Yulia Lukyanova


Yulia Lukyanova é uma psicóloga social fascinada por protestos. É russa, mas vive em Edimburgo, na Escócia, há algum tempo. Terminou a sua tese de doutoramento, intitulada "Manufacturing dissent in Russia: A discursive psychological analysis of protesters’ talk" na Universidade de Edinburgo, em 2016. Hoje em dia, é professora de sociologia e investiga o movimento de diáspora, da Rússia para o Reino Unido, e os movimentos sociais na Rússia. 

Tradução João Brandão, que estudou Cinema mas se licenciou em Estudos Ingleses e Portugueses. Trabalha como tradutor.

Oração Punk

Maria S. Mendes

 

Oração Punk

 

"Virgem, livra-nos de Putin" 

 

(coro)

Virgem Maria, livra-nos de Putin,

livra-nos de Putin, livra-nos de Putin

(fim do coro)

 

Vestes negras, dragonas douradas

Os paroquianos rastejam em reverência

O fantasma da liberdade [foi para] o céu

A parada gay enviada para a Sibéria em grilhões

 

O líder da KGB [é] o seu santo principal

Conduz os manifestantes para a prisão

Para Sua Santidade não ofender

As mulheres devem parir e amar

 

Merda, merda, merda de Deus

Merda, merda, merda de Deus

 

(coro)

Virgem Maria, Mãe de Deus, torna-te feminista,

torna-te feminista, feminista torna-te

(fim do coro)

 

A igreja reverencia líderes podres,

a procissão da cruz das limusinas pretas

Na escola, vem um pregador

vão para a aula – tragam-lhe dinheiro!

 

O patriarca Gundiai[1] acredita em Putin

Melhor que acreditasse, sacana, em Deus

O cinturão da virgem não substitui comícios

A Virgem Maria connosco está nos protestos!

 

(coro)

Virgem Maria, livra-nos de Putin,

livra-nos de Putin, livra-nos de Putin

(fim do coro)

 

Ver aqui

 

Gosto desta oração punk, apesar de não ser um grande poema ou uma grande canção (e dizem-me que há boas canções punk). A concessiva introduz uma suspeita ponderosa, que recai sobre o uso do verbo afectivo: é possível gostar de certos poemas, mas não dos colectivos activistas que os produziram?

A Oração Punk, cuja atuação se deu em Fevereiro de 2012 na Catedral do Senhor Redentor, em Moscovo, valeu a três membros do colectivo feminista Pussy Riot a acusação de vandalismo e incitação ao ódio religioso.

Em termos musicais, o coro com que o hino abre sugere uma linha melódica reminiscente dos cânticos litúrgicos ortodoxos, logo interrompida pelos versos gritados que se seguem (ler aqui) Na língua original, o jogo de repetições e aliterações é mais eficaz do que em tradução, e o ritmo abrupto dos versos rimados contrasta com a cadência do coro que se repete.

Se o coro começa por ser uma exortação iconoclasta à Virgem Maria para que liberte o povo russo de Putin, os versos que se seguem são uma crítica feroz à aliança pouco ortodoxa entre a Igreja e o Estado russos. E é este paralelismo, estabelecido no primeiro verso imediatamente a seguir ao refrão – as “vestes negras” e as “dragonas douradas” (metáforas, respectivamente, do clero e do KGB), que permite dar sentido à sucessão de imagens elípticas que se justapõem sem o benefício de uma sintaxe agregadora: os verbos ou conectores são elididos (feição que as traduções consultadas mais bem conseguidas, e mais literárias, obliteram (ler aqui).

As comparações que se sucedem são óbvias e os termos da comparação explicitados. O “santo principal” é “o líder da KGB”, ainda que o referente da segunda forma de tratamento não o seja: “Para Sua Santidade não ofender / as mulheres devem parir e amar”. A qual santo é que as mulheres não deverão ofender? A relação antitética criada logo na primeira imagem (“vestes negras” / “dragonas douradas”) permite identificar na relação de subordinação (não apenas da oração final, mas do género feminino) a outra face da moeda: se o “santo principal” (Putin) envia manifestantes para a prisão, é o Patriarca Kirill (sinédoque da Igreja colaboracionista) que subordina as mulheres à sua função doméstica - e domesticada.

A referência à cerimónia do período quaresmal, a “procissão das cruzes”, na terceira estrofe, surge aposta às “limusinas pretas”. A imagem de uma procissão de carros de luxo importados tem, até para quem não se passeou pelas ruas da capital russa, um referente inequívoco, e às máfias ou magnatas que tomaram de assalto o leviatânico Estado pós-perestroika contrapõe-se o mantra: “Mãe de Deus, livra-nos de Putin!”

Mas uma banda punk feminista que urge/exorta a Virgem Maria a tornar-se feminista, que emprega um refrão “Merda de Deus, merda de Deus” para exortar a Igreja Ortodoxa a abandonar a aliança corrupta com o poder secular, erigida nos escombros do antigo império soviético, não poderia ser alusiva, subtil e mole. Os manifestos artísticos e políticos (punk) buscam outros efeitos.

Uma leitura atenta deste poema não poderá descobrir nas suas palavras violentas e obscenas, nem nas suas imagens gráficas, o protesto “tristemente protestante” de uma Akmatova ou de um Mandelstam, e de outros poetas dissidentes, que escreveram numa tradição literária que continua a ter na Rússia do século XXI um terreno inesperadamente fértil.

A Oração Punk não perdurará pela concisão com que numas poucas sílabas se afirma o “ofício sagrado” do poeta de que fala Akhmatova, nem o poder da memória na transmissão da palavra (os poemas escritos no gulag foram em muitos casos escrevinhados somente na memória dos seus autores e dos seus ouvintes). Não é uma oração-poema, apesar da sua litania iconoclasta, apesar do cenário onde o acto político deveria ser encenado: às portas do altar, local reservado aos sacerdotes.

Mas a performance desta oração de combate na Catedral de Moscovo, com a duração de pouco mais de 40 segundos, é um acontecimento, num sentido óbvio, mas também num sentido menos óbvio, ou até mais literário. Auden famosamente negou que a poesia pudesse fazer alguma coisa acontecer. Porém, quisesse ele resgatar Yeats (a quem o verso é dedicado), e a própria poesia, do tribunal dos defensores da arte como agente de transformação política e social, dificilmente poderíamos ver o elogio de Auden a Yeats como a afirmação da incapacidade do poeta (i.e. Yeats) em transformar a sociedade ou em acrescentar objectos (poemas) à história natural do homem. O poema não faz nada acontecer, logo é nada. Só que o verso prossegue e diz algo inconsistente com a afirmação da radical incapacidade performativa da palavra poética: a poesia sobrevive. E o último verso, ao afirmar a temporalidade da poesia, afirma a sua intemporalidade: it survives, a way of happening, a mouth.

A poesia e a música não provocam acções; um poema não faz um governo cair, não reforma instituições, não proporciona a liberdade nem a torna um bem tangível. Mas um poema é em si um acontecimento, desde que uma boca o diga, desde que o outro o diga, pense, e, porque não?, o grite e comunique. E, enquanto tal acontecer, ele continuará a acontecer.

Poderemos pensar que o grito de revolta das Pussy Riot não sobreviverá à Rússia pós-Putin. Tal como poderemos afirmar que os poemas revolucionários de Maiakovski não perdurariam na Rússia pós-Lenine. Mas tal seria ignorar a óbvia diferença entre escrever poemas na Rússia e escrever poemas ao abrigo de bolsas de criação literária. Seria também ignorar a diferença entre reagir a um poema como uma sucessão de palavras e reagir a um poema-manifesto lendo as suas palavras obscenamente explícitas numa série de outros poemas e de coisas de vária sorte.

[1] Referência pouco velada ao Patriarca, ao apelido de Kirill Gundaev. 

Ana Matoso


Ana Matoso dedica-se agora ao ensino e à tradução. Os primeiros poemas que a marcaram foram traduções dos anos 50 dos poetas românticos ingleses, franceses e alemães. A sua divisa tornou-se, impenitentemente, “quanto mais poético mais verdadeiro”. Passou ao mesmo tempo por uma febre de Sophia de Mello Breyner Andresen, seguida da de Fernando Pessoa e Rilke. Ficou assombrada pelo que Philip Larkin designou de “a Ford-car view of literature”, e desconfia por princípio de manuais de instrução literária. Abandonou o culto da poesia, e começou a interessar-se por outras coisas da vida. Gostava muito de ler um novo livro de António Franco Alexandre.

Head of a Dandelion

Maria S. Mendes

 

Head of a Dandelion 

 


This is the dandelion with its thousand faculties

 

like an old woman taken by the neck

and shaken to pieces.

 

This is the dust-flower flitting away.

 

This is the flower of amnesia.

It has opened its head to the wind,

all havoc and weakness, 

 

as if a wooden man should stroll through fire…

 

In this unequal trial, one thing

controls the invisible violence of the air,

 

the other gets smashed and will not give in.

 

One thing flexes its tail causing widespread devastation,

it takes hold of the trees, it blows their failings out of them,

it throws in sideways, it flashes the river upriver;

 

the other thing gives up its skin and bones,

goes up in smoke, lets go of its ashes…

 

and this is the flower of no property,

this is the wind-bitten dandelion

worn away to its one recalcitrant element

 

like when Osiris

blows his scales and weighs the soul with a feather.

 

Alice Oswald, “Head of a Dandelion”, Woods. London: Faber and Faber, 2008.

 

 

Gosto deste poema, em primeiro lugar, por ser muito visual. Quase todos os versos se materializam numa imagem que nos acompanha durante muito tempo, mesmo depois de praticamente termos esquecido todos os outros textos do mesmo livro.

Outro elemento de que gosto é o ponto de partida ser uma planta espontânea com um aspecto fragilíssimo e insignificante –  o dente-de-leão. É precisamente a fragilidade desta flor, sempre prestes não só a desfazer-se, mas também a ser levada pelo vento ou pelo sopro de algum transeunte, que a torna uma referência fortíssima para a relação na base de todo o poema: a semelhança entre o dente-de-leão e o pensamento ou o cérebro humano, com ênfase na ideia, justificada, de que a nossa pobre cabeça está sempre no limiar da desintegração.

Convenhamos que, como sugere Oswald, o pensamento participa num “confronto desigual”. As imagens da velha agarrada pelo pescoço e sacudida até se desfazer, o homem de madeira que atravessa o fogo, dir-se-ia que distraidamente, surgem associadas à questão da memória. A associação das sementes do dente-de-leão à memória, através das referências à amnésia, à cabeça que se abre ao vento, “toda ela devastação e fraqueza”, sublinha as vulnerabilidades de uma das capacidades mais essenciais do ser humano, com efeitos espalhafatosos quando começa a falhar.

No dístico final, Osíris pesa a alma com uma pena. Estamos mais habituados a avaliar o valor das coisas (metais preciosos, alimentos, acontecimentos e às vezes até a literatura) pelo peso que têm, não pela leveza, mas, segundo o mito egípcio, os corpos mais pesados do que uma pena seriam devorados por um monstro, os corpos mais leves do que esta receberiam a recompensa da vida eterna. No título do poema temos uma figura aparentemente fraca que ao longo do texto vai revelando a sua força; no fim concluímos que algo leve pode ser mais valioso do que algo pesado.

Oswald deixa-nos com esta imagem inesperada, sem nos explicar o que distingue as almas mais leves – o que fizeram para não terem peso. Para resolver esta dúvida, talvez seja preciso reter a lição do dente-de-leão, flor simultaneamente “sem propriedade” e de “mil capacidades”, que, perante a violência que o sacode, “desgastado até ao seu único elemento recalcitrante”, simplesmente abre mão do que parecia importante, mas afinal era dispensável.

A partir destas imagens simples, mas fortíssimas em termos visuais e conceptuais, Alice Oswald compõe um poema breve que, tal como o dente-de-leão, entrega as suas sementes ao vento. É inevitável que algumas delas se prendam na nossa roupa ou no nosso cabelo, deixando-nos a pensar em questões como o desequilíbrio entre o nosso pensamentozinho e as forças poderosas com que tem de lidar, o papel da memória na nossa relação connosco mesmos e o mundo, o que é essencial e o que poderíamos dispensar.

Alda Rodrigues


Alda Rodrigues trabalha em tradução, revisão de texto, lexicografia e coordenação editorial. É co-autora do Cinéfilo Preguiçoso. Tem uma relação totalmente descomprometida e informal com a poesia.

Pa’lante

Maria S. Mendes

 

Oh I just wanna go to work —

And get back home, and be something

I just wanna fall and lie —

And do my time, and be something

Well I just wanna prove my worth —

On the planet Earth, and be, something

I just wanna fall in love

Not fuck it up, and feel something

 

Well lately, don’t understand what I am

Treated as a fool

Not quite a woman or a man

Well I don’t know

I guess I don’t understand the plan

 

Colonized, and hypnotized, be something

Sterilized, dehumanized, be something

Well take your pay

And stay out the way, be something

Ah do your best

But fuck the rest, be something

 

Well lately, it’s been mighty hard to see

Just searching for my lost humanity

I look for you, my friend

But do you look for me?

 

Lately I’m not too afraid, to die

I wanna leave it all behind

I think about it sometimes

Lately all my time’s been movin slow

I don’t know where I’m gonna go

Just give me time, I’ll know

 

Oh, any day now

 

"All died dreaming hating and waiting

 

Dead Puerto Ricans

Who never knew they were Puerto Ricans

Who never took a coffee break

from the tenth commandment

to KILL KILL KILL

the landlords of their cracked skulls

and communicate with their latin souls

 

Juan

Miguel

Milagros

Olga

Manuel

From the nervous breakdown streets

where the mice live like millionaires

And the people do not live at all"

 

From el barrio to Arecibo, ¡Pa’lante!

From Marble Hill to the ghost of Emmett Till, ¡Pa’lante!

To Juan, Miguel, Milagros, Manuel, ¡Pa’lante!

To all who came before, we say, ¡Pa’lante!

To my mother and my father, I say, ¡Pa’lante!

To Julia, and Sylvia, ¡Pa’lante!

To all who had to hide, I say, ¡Pa’lante!

To all who lost their pride, I say, ¡Pa’lante!

To all who had to survive, I say, ¡Pa’lante!

To my brothers, and my sisters, I say, ¡Pa’lante!

¡Pa’lante!

¡Pa’lante!

To all came before, we say, ¡Pa’lante!

 

Hurray for the Riff Raff, “Pa’lante”, The Navigator, ATO Records. 2017.

 

Gosto deste poema porque a sua qualidade não depende das coisas óbvias que se lhe apontam. Ocasionalmente, a boa poesia tem sido descrita como honesta e compatível com a essência do seu autor: quanto mais do autor descobrimos num poema, melhor a qualidade (ou algo parecido). Também ocasionalmente, mas não necessariamente ao mesmo tempo, a poesia boa tem sido descrita como obrigatoriamente política: quanto mais reflectir a sociedade em que se insere, melhor é (ou algo muito parecido). Este poema, aparentemente, colige estes dois factores: o alto teor de pessoalidade e a necessária intervenção cívica.

 

The Navigator (2017), sexto álbum dos Hurray for the Riff Raff, é especial por interromper aquilo que a autora, Alynda Segarra, vinha a fazer nos discos precedentes: depurar estruturas musicais da folk americana. Este, ao invés, vem marcado pelos sons latinos. Neste poema em particular, o título aponta logo para as raízes latinas de Segarra: “Pa’lante” é a contracção de “para adelante”, uma expressão comum entre membros da comunidade porto-riquenha. Mas essas influências latinas também vêm pela voz do poeta Pedro Pietri, que declama na canção parte do seu poema mais famoso, “Puerto Rican Obituary” (o poema recitado é truncado em relação à versão escrita) — a ligação às raízes, como bónus, é feita da forma mais digna: através da poesia.

Esta latinização é temática, para começar, mas é também estilística, ao assumir, numa expressão retirada do poema de Pietri, o “broken english” da condição bilingue de Segarra. A explicação vem do poema de Pietri: “They are dead / and will not return from the dead / until they stop neglecting / the art of their dialogue— / for broken english lessons / to impress the mister goldsteins— / who keep them employed”. Ao contrário do que presumimos normalmente acerca de poesia, acerca do requinte estilístico, o que aqui se aceita desde logo é que o refinamento do inglês é pernicioso (politicamente, como forma de subserviência, mas também esteticamente, no poema, que replica expressões da língua materna como parte integrante do discurso — e isso acontece em Pietri e em Segarra). O poema de Segarra, de um certo ponto de vista, não passa de uma enumeração de clichés: a descrição de que a autora só quer ser alguém, a ideia de que a morte pode ser algo bom, o poema de Pietri como forma de ligação às suas raízes ou a ideia de que sem a nossa herança nunca seremos ninguém. Só deixa de ser um cliché quando Segarra diz “el barrio” e “Arecibo” e depois faz a rima interna em inglês perfeito: “Marble Hill” e “Emmett Till”; quando ela pronuncia os nomes próprios “Julia” e “Sylvia”. A partir desse momento, e retrospectivamente, tudo o que foi dito tem de ser reavaliado.

Para este ser um poema bom é necessário, por um lado, ouvi-lo na voz de Segarra (como, aliás, o de Pietri precisa da voz do autor); por outro lado, é necessário compreender que os melhores poemas podem ser construídos a partir de erros (no caso, dificuldades em lidar com uma segunda língua). A qualidade está latente não nos significados — tudo é óbvio, nesse sentido —, mas nas nuances vocais. De todas as coisas que se disseram deste disco, a minha preferida continua a ser que para o fazer Segarra se rendeu às suas influências de adolescência: ser porto-riquenha e punk em Nova Iorque. Quem estranhar que este poema é o resultado destas duas características, claramente não percebeu nem o que é a poesia nem o que é o punk.

Telmo Rodrigues

 

 

 

Alba

Maria S. Mendes

 

Alba

 

Climbing in the mist I came to a terrace wall

and saw above it a small field of broad beans in flower

their white fragrance was flowing through the first light

of morning there a little way up the mountain

where I had made my way through the olive groves

and under the blossoming boughs of the almonds

above the old hut of the charcoal burner

where suddenly the scent of the bean flowers found me

and as I took the next step I heard

the creak of the harness and the mule’s shod hooves

striking stones in the furrow and then the low voice

of the man talking softly praising the mule

as he walked behind through the cloud in his white shirt

along the row and between his own words

he was singing under his breath a few phrases

at a time of the same song singing it

to his mule it seemed as I listened

watching their breaths and not understanding a word

 

W. S. Merwin, “Alba”, The New Yorker, 2008.

 

 

 

Gosto deste poema porque aparentemente nada se passa nele. O que primeiro me atraiu foi a nomeação hábil da flora — como alguém diz, um dos “truques” que os escritores usam —, que seduz e causa admiração porque revela o conhecimento especializado de uma parte do mundo. Através dessa nomeação conseguimos perceber a localização geográfica e temporal do momento que o poema descreve: “Alba”, o título, não se reporta apenas à aurora (que de resto fica explícito no terceiro e quarto versos), nem é somente indicativo da névoa característica desse período do dia, especialmente em altitudes elevadas, como é o caso; é ainda o nome de uma comuna na região de Piemonte, no norte de Itália (o que descobri neste artigo acintoso). À luz desta informação, as favas, os olivais, a cabana do carvoeiro, as amendoeiras e até o aparecimento do homem com a mula adquirem um sentido óbvio e quase banal. O facto de as favas e as amendoeiras estarem em flor dá-nos a referência temporal: as amendoeiras só florescem em finais de Janeiro ou inícios de Fevereiro; em relação às favas, é mais complicado e depende de quando foram plantadas — se o tiverem sido no tempo mais favorável, em Outubro/Novembro, poderão ser colhidas em Maio, mas não consegui saber se seria possível estarem em flor na mesma altura das amendoeiras (o poema dá-nos a ilusão de que adquirimos algum do conhecimento especializado que o poeta parece exibir, mas perante estas incertezas sabemos que não).

Há mais truques neste poema: a ausência de pontuação, frases que vertem de um verso para outro e por isso adquirem significados ambíguos, dar cor a cheiros (o cheiro branco das favas em flor), a atribuição de agência a coisas que não o têm (foi o cheiro das favas em flor que encontrou o poeta, não o contrário) e, um dos mais importantes, apresentar-se como uma descrição factual — além da nomeação da flora, note-se a precisão da descrição dos sons dos cascos da mula, da cor da camisa do homem, do bafo que ambos exalam. O “there” do quarto verso surge quase dissimulado, mas contribui para nos garantir que este passeio se deu, “lá”, ou “ali”, como se o poeta estivesse a apontar para um local físico e a contar o que lá aconteceu.

No final, ficamos com a imagem idílica de uma manhã rural, que dá a impressão de existir por si mesma em virtude dos elementos naturais, vulgares, que a compõem, como se fosse já um poema só à espera de ser escrito, e que Merwin apanhou. Contudo, aquele “there” não funciona apenas enquanto indicação factual. Cria também um distanciamento entre o supostamente vivido e o escrito, e assegura, com os truques referidos, que o momento é uma criação porque o poema é uma criação. Não há poemas à espera de serem apanhados, e talvez por isso os versos da canção que o homem repete ritmicamente à mula sejam incompreensíveis para o poeta. Poemas são feitos, com mais ou menos truques, mesmo que nos dêem a impressão de que nada, ou pouco, se passa — esse é o truque maior.

 

Helena Carneiro fez o mestrado no Programa em Teoria da Literatura (FLUL). É redactora e assistente editorial na Imprensa da Universidade de Lisboa. Dirige a secção de recensões da revista online Forma de Vida, para a qual também faz entrevistas. Tem tido quem lhe explique poesia e gosta muito de Philip Larkin, que na sua lápide preferiu ser denominado “escritor”.

5. vejo / a pequena suja

Maria S. Mendes

 

5.

vejo
a pequena suja
a brincar na rua
com os cagalhões dos cães

não digo que seja sublime mas
como tudo
não deixa de ser interessante

alguns
parecem as
galáxias
mais longínquas
ou os berços
de estrelas
Barnard 68
tudo claro
mérito dela
e das suas mãos

gostava também
de ir brincar com ela

mas
quem sou eu para isso
já nenhum poeta o faz
só uma ou outra das 4.370
inspecções-gerais da vida corrente

já nenhum poeta o faz
nem os maiores
nem os simplesmente grandes
e menos ainda os pequenos

já nenhum poeta o faz


Alberto Pimenta, "5.", De nadaBoca, Lisboa, 2012.

Gosto deste poema porque é um poema de Alberto Pimenta. Acredito que Alberto Pimenta é um dos maiores poetas vivos, incluindo neste conjunto aqueles que estão mortos-apesar-de-estarem-vivos e os que estão vivos-apesar-de-estarem-mortos. A poesia consegue estar sempre viva e sempre morta, em simultâneo. É um dos seus paradoxos. Por esta razão, um bom poeta vivo tem de estar sempre um bocadinho morto e na companhia dos que estão vivos-apesar-de-estarem-mortos. Aplica-se o mesmíssimo princípio a um bom poeta morto, garantindo assim a igualdade de oportunidades no acesso à lista canónica.

Este poema começa com uma imagem que, fazendo ressoar um eco da galáxia pessoana (aqui despojado de chocolates e de metafísica), acentua um certo tom de anacronismo. É que hoje, nestes dias higienizados e uniformizados, seremos facilmente levados a afirmar que não existem já pequenas sujas. Ou, para ser correto, quase não existem. Aparecem, de vez em quando, por exotismo ou como apêndices visuais de catástrofes humanitárias. De resto, à nossa volta, todas as meninas são limpas e lindas, sobretudo quando estão a adquirir fé na catequese ou a vender produtos na televisão.

Esta particular menina suja brinca na rua (como se fosse na cama, talvez) com os "cagalhões dos cães". Os “cagalhões”, tal como outros dejetos mais ou menos meritórios, andam ausentes do discurso poético, razão pela qual devemos celebrar a sua aparição neste poema, ainda que alguém possa querer entendê-los como metáfora. As metáforas não têm cheiro e não consta que sequem ao sol, o que as torna bastante mais higiénicas e perenes do que os “cagalhões” (apesar de também morrerem, como garante metaforicamente um ilustre filósofo). Por outro lado, os “cagalhões” são muito mais antigos do que as metáforas, o que lhes confere um prestígio ancestral, tornando-os merecedores do mesmo tipo de respeitinho – coisa sempre muito bonita - que prestamos a antepassados e a museus de arte antiga. Para reforçar a dignidade dos “cagalhões”, convém ainda lembrar que eles são, neste poema, um elemento constitutivo de uma poderosa imagem poética.

Esta imagem da menina que, pelo mérito das suas mãos, reconfigura o caos torna-se mote de um lamento elegíaco por um tempo mítico em que poetas e meninas sujas brincavam com coisas que se encontram no chão, ainda que essas coisas não se enquadrem na categoria do “sublime” e sejam meramente “interessantes” ("como tudo", aliás). Aqui conflui uma longa tradição que poderá ter iniciado a sua via (sacra) de extinção, apesar dos continuados esforços de alguns poetas, entre os quais se destaca Alberto Pimenta. Não se trata apenas de uma consequência do declínio da poesia satírica, que irrompe necessariamente da vida comum e do real concreto e observável, mas de uma deslocação mais profunda do foco e do(s) assunto(s) poéticos. Sobre isso, está tudo dito, ainda que mais houvesse a dizer.  

O poema nasce do olhar: “vejo”. E é pelo olhar que interpela o leitor, como se quisesse relembrar uma dimensão estranhamente perdida. “Já nenhum poeta o faz”, diz ele. Não mais, treslemos nós, não mais. Mas se a melancolia da aparente desistência nos levar a temer pela extinção iminente desta poesia que olha para o lixo e para a rua, que se ocupa dos seres que respiram e que cospem, viremos as páginas do livro e logo constataremos que ainda não foi desta.

Rui Lopes


Rui Lopes é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas (F.C.S.H. da Universidade Nova de Lisboa) e Mestre em Teoria da Literatura (Fac. Letras da Universidade de Lisboa). Tem desenvolvido a sua atividade profissional como professor e tradutor. Em 2017, publicou o livro Aqui há gato!, com Renata Bueno, pela Orfeu Mini. Quando não está a fazer alguma das coisas já mencionadas, geralmente dedica-se às artes performativas, eliminando assim qualquer vestígio de tempo livre.

Nada Falta

Maria S. Mendes

 

NADA FALTA

 

Ao cair da tarde,

passa lá fora

a melancólica,

antiquíssima flauta

do amolador.

 

Vai-se afastando

e deixando atrás de si,

como uma cascata,

a toada

magoada e urgente

da noite que vem

e promete ser

varrida de água

e de vento,

fatal para vagabundos

e para espíritos aflitos

e afligidos.

 

Mas

entre os múltiplos golpes

executados por aí

com um cutelo de dois gumes

de fabrico euro-alemão,

esta tormenta,

no ritmo da flauta,

anuncia sobretudo a queixa

de mais um trabalho

em liberdade e em gosto

prestes a morrer.

 

Parece

que mais ninguém a ouve,

e,

pelo silêncio que fica,

parece até

que já não há ninguém vivo na rua.

Nem os cães…

Estarão

a ver

as inundações

na América

 

— Os cães também?

 

Claro, nem ladram.

 

A televisão

inunda-lhes a casa lá longe

e eles gostam.

Também lhes afia as facas

que trazem na cabeça

e todos gostam.

Não precisam de amolador.

Não precisam de mais nada.

 

Alberto Pimenta, "Nada Falta", Nove fabulo, o mea vox/De novo falo, a meia voz. Lisboa: Pianola, 2016.

 

Gosto deste poema porque fala da flauta do amolador — e, neste Outono, teima em não chover. No português das telenovelas brasileiras com que cresci, amolador podia designar aquele que arrelia ou aborrece: “Não enche o saco, não amola!” Um leitor de poesia não é, nesta acepção, um amolador, desde que não pretenda explicar o sentido do poema. Porque, diz o poeta, um poema não quer dizer: ele simplesmente diz. Comentar um poema, nos termos em que o faço, significa amolá-lo, molestá-lo: cansar a sua beleza, como também diz o povo irmão. Mas o leitor pode talvez ser um amolador na acepção que o poema invoca: alguém que afia o gume do poema no esmeril da sua dor, ou que conserta imaginosamente a quebra dos versos, preenchendo os espaços em branco.

Descrever alguém como amolador não significa aproximá-lo de nós, mas aumentar a distância que nos separa dele. O amolador sempre foi uma figura outonal, não porque viesse apenas com as estações frias, mas porque se dizia que a música da sua flauta era já sinal de chuva. Além de amolar facas e tesouras, consertava guarda-chuvas. No poema, o amolador não é alguém que chega e se faz ouvir, mas aquele que se afasta — “ao cair da tarde”, esclarece o verso inicial. A sua música vem de longe, de um passado ainda mais remoto do que possamos supor, talvez de um fundo mitopoético — a sua flauta é “antiquíssima” —, ao qual parece agora regressar, por fim. A flauta não faz já alarde de um préstimo: “anuncia sobretudo a queixa/ de mais um trabalho/ em liberdade e em gosto/ prestes a morrer”. O que deixa atrás de si é um pranto: “uma toada magoada e urgente” que flui “como uma cascata”. Escorre por ruas desertas, “parece até/ que já não há ninguém vivo na rua”. Ao contrário do flautista de Hamelin, este tocador não atrai qualquer criatura: nem crianças, nem ratos sequer. Tudo isto faz lembrar o canto do vendedor de peixe açoriano que Ernst Jünger descreve no final de O Coração Aventuroso: calcorreando ruelas estreitas e adormecidas — também aqui “ninguém saía de casa e nenhuma janela se abria” —, o vendedor lançava um pregão exuberante, que se convertia logo, em voz baixa, numa expressão desesperada ou numa praga de cansaço. No poema, o magnífico apelo da flauta do amolador soa como um lamento.

Nenhuma cheia, contudo, aniquilou a população: as gentes e até os cães estão fechados em casa, hipnotizados, talvez mesmo medusificados. A televisão dá-lhes outra música, que também anuncia chuva — as inundações na América, onde tudo é em grande e qualquer cheia adquire imediatamente proporções bíblicas, como, no directo do telejornal, gosta de apregoar o jornalista que nunca leu o Êxodo ou o Apocalipse. A catástrofe, todavia, não são “as inundações na América” — essa terra onde Disaster never rests!, como advertiam, em tempos não muito distantes, cartazes da Cruz Vermelha americana —, mas a enxurrada televisiva. É decerto uma inundação de água tépida, como agrada à rã que se deixa cozer alegremente em lume brando: “A televisão/ inunda-lhes a casa lá longe/ e eles gostam”. Amusing ourselves to death. A televisão é também o grande amolador: deixa o espírito embotado (isto é, sem gume), mas “afia as facas/ que trazem dentro da cabeça/ e todos gostam”. Que facas são essas? (Como se lê noutro poema deste livro: “Não vou responder/ não me apetece”.)

Daqui se infere que a tonalidade melancólica do poema não exclui uma disposição tensa. Pelo contrário: em alguns momentos, a diatribe torce o pescoço à elegia. Na terceira estrofe, o poema visa “um cutelo de dois gumes de fabrico euro-alemão”, manejado certamente por destro açougueiro, já que tem distribuído “múltiplos golpes” por aí. E um riso escarninho, que se deve sobretudo à ingerência de uma voz irrisória que o poeta há muito não ouvia, assoma em vários poemas do livro, insinuando-se pontualmente aqui: “— Os cães também?” Tem-se dito que esta reversibilidade é típica da poesia de Alberto Pimenta: o baixo que se eleva, o sublime que devém grotesco, o elegíaco que se revela ácido, o pranto que mostra incisivo dente. Talvez isto já nos fosse dado pelo título do poema, uma declaração aparentemente reconfortante: “Nada falta”. Esta expressão de plenitude designa afinal uma extinção — e talvez uma liquidação total, como anunciam as montras no fim da grande época dos saldos.

Pedro Sobrado


Pedro Sobrado. Licenciado em Ciências da Comunicação e mestre em Estudos de Teatro, prepara uma tese de doutoramento sobre Gil Vicente. É professor de literatura dramática na Universidade Lusófona do Porto. Participou como dramaturgista em espectáculos teatrais de Nuno Carinhas e de Ricardo Pais. Trabalha no departamento de Edições do Teatro Nacional São João, onde assegura a coordenação editorial de livros e outras publicações. É autor do blogue Mosca Fosforescente.

Canção da Alma Caiada

Maria S. Mendes

 

Canção da Alma Caiada

 

Aprendi desde criança

que é melhor me calar

e dançar conforme a dança

do que jamais ousar

 

mas às vezes pressinto

que não me enquadro na lei:

minto sobre o que sinto

e esqueço tudo o que sei.

 

Só comigo ouso lutar:

sem me poder vencer,

tento afogar no mar

o fogo em que quero arder.

 

De dia caio minh’alma.

Só à noite caio em mim:

por isso me falta calma

e vivo inquieto assim.

 

António Cícero, “Canção da Alma Caiada”, Guardar: Poemas Escolhidos. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002.

 

Gosto deste poema porque a sua simplicidade musical não obsta à introspecção psicológica. Na longa-metragem Shadowlands (1993) é atribuída ao escritor C.S. Lewis a frase “we read to know we’re not alone”, assim garantindo que até nos momentos mais desacompanhados nos consolamos em descobrir, numa ou noutra sequência de palavras, uma versão mais articulada daquilo que julgamos sentir.

Embora datável da década de 1970, li o poema “Canção da Alma Caiada”, do poeta brasileiro António Cícero, muito mais tarde. Duas coisas me chamaram a atenção: a estrofe (quadra) e a rima (alternada) correspondiam às descrições mais antigas e convencionais daquilo que reconhecia como poesia. Por outro lado, e tal como o fogo erótico de evocação camoniana (“tento afogar no mar/ o fogo em que quero arder”), o uso das palavras homónimas “caio” (verbo caiar) e “caio” (verbo cair) não só pareciam sugerir um “uso literário da linguagem” como iam ao encontro do vocabulário de uma poetisa que então me interessava particularmente: Sophia de Mello Breyner. Em “Arte Poética I” (Geografia, 1967), Sophia escreve que “Em Lagos em Agosto o sol cai a direito e há sítios onde até o chão é caiado”, mas no poema “Porque” (Mar Novo, 1958) a associação é claramente negativa e os outros “são os túmulos caiados/ Onde germina calada a podridão”. Aqui, “caiados” tem o sentido de ocultação, tal como no poema de António Cícero.

Também a musicalidade do poema parecia confirmada pelo próprio título. Na verdade, sob o nome “Alma Caiada”, o poema foi musicado por Marina Lima, irmã do poeta, e gravado por Zizi Possi, que o incluiu no álbum Pedaço de Mim (1979). A canção que dá nome ao álbum, da autoria de Chico Buarque, era para mim totalmente desconhecida e inclui os extraordinários versos “A saudade é arrumar o quarto/ Do filho que já morreu” que, segundo algumas leituras, é uma alusão à violência política da ditadura militar brasileira.

Assim, este poema parece ilustrar três coisas que, por vezes, acontecem quando lemos poesia: descobrimos coisas que desconhecíamos; estabelecemos relações de parentesco entre poemas e/ou poetas; e, finalmente, encontramos pessoas que dizem, de forma mais eloquente, coisas que gostaríamos de ter dito.

António J. Ramalho


António J. Ramalho é arquivista e desconfia de afirmações genéricas, porém enfáticas, do tipo “gosto muito de poesia”. 

 

There is a button on the remote called FAV

Sara Carvalho

There is a button on the remote control called FAV. You can program your favorite channels. Don’t like the world you live in, choose one closer to the world you live in. I choose the independent film channel and HBO. Neither have news programs as far as I can tell. This is what is great about America—anyone can make these kinds of choices. Instead of the news, HBO has The Sopranos

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A última morada

Sara Carvalho

 

A última morada

 

Quem passa o portão de ferro

do lado esquerdo estão os teus pais

e alguns irmãos  No talhão de

cima a minha avó  e tu

numa sepultura simples

Aqui e ali por entre os anjos

de mármore  jazem alguns

vizinhos  um jovem soldado

que morreu na guerra  uma criança

que não deveria estar ali  Lentamente

vão-se restabelecendo cumplicidades

num mundo onde as palavras

(e a vida) são desnecessárias

 

Jorge Sousa Braga, “A última morada”, O Novíssimo Testamento e Outros Poemas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2012.

 

 

Gosto deste poema pela ironia surpreendente do que surge entre parênteses, na última linha. A surpresa é subtil e, numa primeira leitura, pode fazer sorrir: num mundo de mortos, a vida é desnecessária.

Comecei pelo fim, mas agrada-me, logo nos primeiros versos, a imprecisão coloquial com que são dadas indicações sobre a localização de alguém. Se uma determinada localização é sempre relativa, neste poema as indicações estabelecem simultaneamente um mapa de relações genealógicas, também algo impreciso. Temos, assim, numa “sepultura simples”, um “tu”, cujos pais e alguns irmãos (do “tu” ou dos pais deste?) se encontram do lado esquerdo de quem passa o portão de ferro; uma avó de quem escreve (“a minha avó”), que jaz no talhão de cima; alguns vizinhos (do “tu”, de quem escreve, de ambos, ou tão-somente vizinhos de sepultura?); um jovem soldado morto na guerra; uma criança “que não deveria estar ali”, pois não há sítio mais absurdo onde uma criança possa estar do que num cemitério. “Cemitério” é, aliás, palavra que não figura no poema, tal como, no mundo particular que nele se evoca, as palavras e a vida são desnecessárias. Há, no entanto, palavras que pertencem ao campo lexical de “cemitério”, como “talhão”, “sepultura”, ou “anjos de mármore” – e, naturalmente, “última morada”.

Gosto deste poema por aquilo que nele julgo ler sobre a vida (e a literatura). Tal como, na literatura, metáforas podem nascer de metonímias, na vida, relações de cumplicidade decorrem muitas vezes da contiguidade. Interrogo-me, ao escrever isto, se há alguma espécie de cumplicidade que não nasça da proximidade. No poema, as cumplicidades vão sendo restabelecidas “lentamente”, porque, no mundo particular que aí se evoca, também a pressa é desnecessária. Agrada-me a descrição de uma última morada onde, passando-se certo portão de ferro, e na ausência de palavras, pode haver lugar e tempo para relações de cumplicidade. Penso ainda, ao ler o poema, na ideia de que a vida é algo que está entre parênteses, interposto entre uma coisa e outra coisa. Gosto, por fim, da sugestão de uma vida além da vida, onde, por assim dizer, não se está só. 

Ana Cláudia Santos


Ana Cláudia Santos trabalha na Imprensa da Universidade de Lisboa, e faz outras coisas nos tempos livres. Doutorou-se e escreveu sobre Giambattista Vico, cuja autobiografia traduziu. Nunca conseguiu destruir os poemas que escreveu em criança, e continua a ter um fraco pela rima.